Político, escritor, viajante, foi introdutor do trotskismo na Argentina, aderiu ao
movimento reformista, criticou a estrutura latifundiária e defendeu a luta dos povos
originários e a integração continental
Por Cristina Mateu *
[Tradução de Yuri Martins-Fontes e Carlos Serrano]
JUSTO, Liborio; “Quebracho”; “Lobodón Garra” (argentino; Buenos Aires, 1902 – Buenos
Aires, 2003)
1 – Vida e práxis política
Liborio Justo nasceu no seio da oligarquia argentina, na virada do século XX. Em precoce
autobiografia (Prontuario, 1940), apresenta as raízes, os enredos e vínculos políticos que
marcaram sua vida, descrevendo como gerações de sua família estiveram ligadas a
processos e a personagens da história nacional.
Um de seus bisavós chegou à Argentina em 1829, nos tempos da guerra entre Unitários e
Federais (entre 1820 e 1853), tornando-se proprietário de terras. Seu avô paterno, natural
de Corrientes, foi deputado, poeta, historiador, maçom, autor do primeiro Código Rural
correntino e, brevemente, governador desta província (1871). Seu avô materno, filho de
espanhóis, integrou o Corpo de Caçadores, como encarregado da luta contra os indígenas
araucanos na fronteira Sul, tendo posteriormente participado da Guerra da Tríplice Aliança
contra o Paraguai, em 1865. Seus pais pertenciam a antigas famílias de proprietários de
terras “decadentes”, mas orgulhosas de sua posição social e desejosas de recuperá-la. Seu
pai era capitão do exército, motivo pelo qual a família veio a se instalar nas proximidades de
Campo de Mayo (zona militar próxima à capital federal) – período que ele recordaria como
anos de isolamento social. O jovem Justo viveu ainda sob excessivos cuidados de familiares e
empregados, em uma atmosfera de forte sentimento religioso, que o sufocava.
Em 1911, entrou no colégio La Salle, em Buenos Aires – tendo detestado tanto a escola
como a cidade. Seu interesse pela literatura e suas atitudes extravagantes foram sua
resposta a uma educação que considerava “livresca e indigesta”, afrontando os privilégios
sociais de um ambiente aristocrático e religioso que rejeitava. Suas preocupações recaíam
sobre a origem da vida, do mundo, o destino do homem e seu próprio destino, as expressões
americanistas que descobria – rejeitando as inclinações europeístas de sua família. Nessa
época, dedicou-se com seriedade à leitura de autores russos, como Dostoiévski, e de latinoamericanos, como Horacio Quiroga, além de participar de competições esportivas.
O conhecimento escasso e confuso do jovem Justo sobre a situação mundial, na época de
início da I Guerra Mundial, o levou a admirar a força da Alemanha e a desconhecer os
acontecimentos sociais que abalavam a Rússia czarista. Em 1918, entrou na faculdade de Medicina, impelido pela família. Estes foram os tempos da luta estudantil pela Reforma Universitária, com a ocupação da Universidad Nacional de Córdoba, e da intensificação das lutas operárias que explodiriam na greve insurrecional conhecida como Semana Trágica. A agitação universitária e a confraternização com jovens de diferentes setores sociais abriram nova perspectiva para suas preocupações e buscas. Foi
candidato a delegado, o que lhe permitiu estreitar laços com estudantes de direita e de
esquerda. Durante este tempo, dedicou-se à fotografia e escreveu seus primeiros artigos –
sobre questões universitárias.
Avançou nos estudos de Medicina, continuando com sua militância junto ao centro
acadêmico; tornou-se assistente de vacinação e ajudante de laboratório. A agitação
universitária da Reforma, que propunha a destruição da velha universidade e a construção
de um mundo novo, o aproximou da chamada Nueva Generación – que questionou a I
Guerra e saudou a Revolução Socialista na Rússia. Em meio ao movimento estudantil, viajou
com seu pai ao Chile, aproximando-se das pegadas indígenas do Caminho Inca e se
comovendo com a imponente paisagem montanhosa do Aconcágua e da Patagônia. Esta foi
uma das vezes em que se afastou da Faculdade, pela qual não se interessava.
Apesar da abertura a novos horizontes políticos e sociais, entre 1921 e 1924 ele
permaneceu preso a um ambiente social que desprezava. Os sentimentos contraditórios
gerados por sua condição de intelectual burguês o faziam agir de maneira frívola, embora
suas reflexões se fortalecessem por meio da leitura de escritores como Jack London, Kipling,
Joseph Conrad (interessando-se pela cultura anglo-saxônica e pela arte renascentista
italiana).
O retorno ao curso de Medicina o colocou novamente em contato com a Nueva
Generación e o movimento reformista – em cujos debates se denunciava a expansão
imperialista dos Estados Unidos sobre o México e a América Central. Isto o levaria a estudar
a história da América do Sul e começar a considerar a possibilidade de uma revolução
continental como solução para os problemas sociais.
A nomeação de seu pai como ministro da guerra, em 1922, fez com que este jovem
rebelde se retraísse. Seu refúgio foi o estudo da história da Argentina e da América Latina,
cujos países estavam submetidos aos interesses expansionistas dos EUA e de sua Doutrina
Monroe. Em 1924, por ocasião do centenário da Batalha de Ayacucho, viajou com seu pai ao
Peru, junto à delegação oficial, participando de opulentas celebrações. Neste país, constatou
a miséria e a opressão das massas indígenas e mestiças, comprovando a má condição
imposta pelo domínio colonial e imperialista a esses territórios – que haviam sido o centro
do grande Império Inca e onde ainda permaneciam vestígios dos antigos ayllus originários
(forma de organização social comunitária). Em 1925, zarpou do porto de La Plata para a
Terra do Fogo, percorrendo as províncias de Santa Cruz e Chubut, visitando o campo
petrolífero da empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales. Partiu novamente para o
Norte da Argentina, cruzando Entre Ríos, Corrientes e Misiones. Neste novo itinerário,
escutou a língua guarani e descobriu a natureza exuberante da selva. Seguindo pelo Alto
Paraná até as cataratas do Iguaçu, conheceu os mensús – trabalhadores contratados para
serviços em moinhos e plantações de erva-mate, tratados como “verdadeiro gado humano”
–, ouvindo relatos de exploração e escravidão.
No trajeto, cruzou com os tenentistas brasileiros rebelados, vindos da Revolta Paulista de 1924, por meio de quem tomou conhecimento do general Isidoro Dias Lopes e da Coluna de Luiz Carlos Prestes. Sem
recursos para prosseguir com suas aventuras, inscreveu-se como eletricista na International
Products, de Assunção, companhia estadunidense que explorava severamente seus
trabalhadores. Quando chegou a seu destino, não foi eletricista, mas carregador de sacos de
tanino; adoeceu, voltou para Assunção e seguiu para Buenos Aires.
Em 1925, participou da celebração do centenário da independência da Bolívia, como
membro da delegação argentina, já ciente dos conflitos regionais, dos interesses das
companhias petrolíferas ianques e da deflagração da Guerra do Chaco. Na época, a Nueva
Generación e o movimento reformista cresciam, reunindo figuras latino-americanas que ele
descreveria como românticas – razão pela qual não se integrava plenamente.
No ano seguinte, zarpou para Liverpool, mas teve que redirecionar seu destino para a
Espanha e a França. Em Paris, participou de uma manifestação pela liberdade de operários
condenados à morte nos EUA; e foi aí que começou a ler sobre a União Soviética e a se
interessar pelas figuras de Lênin e Trótski. Sua viagem prosseguiu pela Itália, onde seu foco
esteve antes nas grandezas artísticas, do que na repressão fascista de Mussolini. Mais tarde,
foi nomeado escrevente em uma missão diplomática argentina em Washington; embora
incomodado, viajou para os EUA. Apesar de todos os seus questionamentos juvenis à política
estadunidense, deslumbrou-se com a modernidade, praticidade e mecanização, a agitação
da vida e o bem-estar social. O trabalho ocupava pouco de seu tempo, de modo que pôde
conhecer vários estados e também bairros afro-estadunidenses – verificando as precárias
condições sociais e o racismo em particular.
Em 1928, novamente viajou pelo território argentino, agora pela Patagônia, registrando
suas grandes estâncias (fazendas), na maior parte inglesas. Seu espírito aventureiro o levava
a rejeitar trabalhos burocráticos, preferindo serviços práticos. Insatisfeito e com escassa
autonomia econômica para vaguear por onde sua curiosidade o empurrasse, o jovem Justo
se dedicou então ao estudo da história nacional.
Sua posição anti-imperialista, ofuscada, quando de sua viagem aos EUA, por uma visão
democrata evolucionista, ressurgiria ao obter bolsa de estudos para pesquisar ideias e
instituições estadunidenses; antes de partir, decidiu empreender sua “verdadeira viagem de
ousadia” – indo para a Terra do Fogo e Chile, onde descobriu as condições de fome dos
indígenas. Sua nova estadia nos EUA lhe permitiu visitar muitos estados e universidades,
travando contato com vários intelectuais; lá defendeu o direito argentino às Ilhas Malvinas e
à Antártida, e questionou o pan-americanismo impulsionado pelo poder estadunidense. Por
essa época, a bolsa de valores de Wall Street já havia quebrado, e Liborio descobriu que o
povo de lá ainda não tinha dimensão da gravidade da crise, considerando-a um “tropeço
passageiro”. Suas caminhadas pelas zonas mais pobres – de negros e latino-americanos, no
bairro revolucionário da Union Square – lhe permitiram verificar o forte racismo contra os
negros. E a crescente penetração e dominação dos EUA na América Latina, com a farsa da
“boa vizinhança”, o preocupava.
Naquela época, o impactou também a notícia do golpe militar argentino, em 1930 (contra
o governo de Hipólito Yrigoyen). Ele esperava reações críticas e revolucionárias dos jovens
da Nueva Generación, mas a passividade de suas principais figuras o decepcionou.
Acreditava que era necessário construir um partido político ao estilo da Alianza Popular
Revolucionaria Americana (APRA), orientado para a unidade anti-imperialista frente ao
avanço dos EUA, mas o desanimou a escassa resposta ao golpe por parte dos líderes do
Partido Socialista. Diante desta situação, voltou seus esforços para o trabalho jornalístico,
com artigos breves e anônimos que apareciam na seção de “Atualidades” do jornal La
Prensa.
A nova situação na Argentina o fez perceber novas questões que, juntamente com um
conhecimento mais exaustivo da URSS e da III Internacional, levaram-no a reformulações
ideológicas. As contradições geradas pelo triunfo eleitoral de seu pai como presidente do
país o pressionavam; sua família o obrigou a continuar os estudos médicos e a aceitar um
cargo municipal (do qual logo desistiu).
O estudo sistemático do materialismo histórico lhe permitiu questionar muitas de suas
ideias anteriores: repensou o papel do proletariado para a unidade da América do Sul, a
escassa efetividade dos postulados do movimento reformista para destruir o regime
capitalista caduco, e a importância decisiva de se participar e conhecer o caráter da luta de
classes no processo revolucionário. Descobriu também, prática e teoricamente, a
peculiaridade e a incidência do imperialismo em seu continente. Não encontrava nenhuma
afinidade com os partidos revolucionários americanos, considerando-os alheios e ignorantes
dos problemas socioeconômicos de seus próprios países; acreditava que os partidos
comunistas da América estavam mais atentos ao processo soviético e às exigências do
nacionalismo russo, do que a suas próprias questões. Insistia que o internacionalismo
marxista deveria se assentar nas realidades nacionais.
Após a publicação de Tierra maldita, em 1932, foi aos EUA com a ideia de apresentar seu
livro em Nova Iorque. Na visita, constatou o desânimo e descalabro de uma cidade em
ruínas, que contrastava com a atmosfera de prosperidade e confiança que ele havia visto
antes. Registrou em fotografias o comércio falido, os milhares de desempregados
amontoados nas praças, as casas abandonadas. Entretanto, as manifestações e publicações
dos revolucionários socialistas cresciam, pondo em xeque a estrutura preexistente. A crise
estadunidense gerou uma efervescência de debates, exposições, ações políticas e artísticas,
que reuniram artistas, professores e escritores. Testemunhar este processo de destruição
das gigantescas forças produtivas dos EUA lhe permitiu reafirmar a tese de Marx sobre a
“anarquia da produção capitalista”.
Ao regressar a Buenos Aires, entrou em contato com o Partido Comunista Argentino
(PCA). Entretanto, logo criticou o que considerou uma falta de ideais nacionais e americanos
neste partido – necessários para promover um processo revolucionário –, e questionou a
política das “frentes populares”, que estabelecia uma aliança com as pretensas “burguesias
nacionais”. De qualquer forma, ele se juntou à Agrupación de Intelectuales, Artistas,
Periodistas y Escritores (AIAPE), escrevendo, proferindo conferências e expondo fotografias.
Simultaneamente, começou a se reunir com os seguidores de Trótski na Argentina.
Manteve com seu pai, o então presidente Agustín Pedro Justo, um relacionamento “com
resignação e filosofia” até 1936, quando o líder argentino recebeu o estadunidense F. D.
Roosevelt – ocasião em que Liborio interrompeu o discurso do visitante com um grito
(“Abaixo o imperialismo!”), ousadia que lhe valeu uns dias preso. A partir de então, Liborio
Justo protagonizaria debates políticos e escreveria seus textos sob o pseudônimo de
Quebracho.
Em 1936, rompeu com o PCA, com sua “Carta aberta aos camaradas comunistas”,
publicada na revista Claridad, na qual apresentava a necessidade de construir uma nova
Internacional Comunista (IC). Sua aproximação fugaz com o comunismo, quando já era
crítico das posições stalinistas do PCA, foi simultânea às suas ligações com adeptos do
trotskismo. Os trotskistas na Argentina haviam formado um primeiro grupo da Oposição de
Esquerda, nascido de uma cisão no Partido Comunista; mas Justo integrou-se a outro grupo
trotskista, junto com Héctor Raurich, Antonio Gallo, Mateo Fossa, Aurelio Narvaja, Nahuel
Moreno e Jorge Abelardo Ramos. A perspectiva de Justo centrava-se em uma revolução
social da unidade latino-americana contra o imperialismo estadunidense. Suas críticas eram
dirigidas não apenas ao comunismo alinhado com a III Internacional, mas também às
diversas vertentes trotskistas que, segundo sua posição, não entendiam o aspecto nacional e
latino-americano.
Algumas vertentes trotskistas conseguiram se unificar, em 1935, na Liga Comunista
Internacionalista. Nesta nova organização, Liborio editou uma revista de divulgação do
grupo, Nuevo Curso, e em seguida a Inicial, até 1941. Quebracho foi um dos polemistas mais
dinâmicos em ambas as publicações. Seu texto “Cómo salir del pantano” continha críticas
incisivas ao reagrupamento, referindo-se ao Que fazer? de Lênin, e à Revolução Permanente
de Trótski.
Com a Liga Comunista fragmentada, em 1939, Justo publicou como Quebracho uma série
de panfletos, sob o selo Acción Obrera, e o jornal La Internacional, que mais tarde se
chamaria La nueva Internacional, dando origem ao Grupo Obrero Revolucionario, formado
por estudantes de La Plata e anarquistas. As intensas discussões sobre a questão da
libertação nacional e a caracterização da estrutura econômica e social argentina dispersaram
o grupo, e Justo formaria então a Liga Obrera Revolucionaria (LOR).
Em 1941, o secretário internacional da IV Internacional, Terence Phelan (Sherry Mangan),
chegou à Argentina com a intenção de unificar os diversos agrupamentos trotskistas.
Entretanto, as posições e termos utilizados nos folhetos da LOR sobre “libertação nacional”,
“imperialismo” e “guerra” foram questionados e acabaram não sendo aprovados. A estes
questionamentos, Quebracho respondeu imediatamente, afirmando que a crítica
desconhecia as condições de repressão e perseguição política impostas pelo governo
conservador. Houve, então, uma ruptura com a direção da IV Internacional, o que repercutiu
na dissolução da LOR em 1943. Justo questionou a posição do trotskismo latino-americano
frente à decisão unilateral do Socialist Workers Party [Partido Socialista dos Trabalhadores]
(SWP) de excluir a LCI do México da IV Internacional, e mais tarde questionou o próprio
Trótski, acusando-o em seu livro León Trotsky y Wall Street (1959) de ter se tornado aliado
do governo burguês de Lázaro Cárdenas e informante do governo dos EUA.
Tendo abandonado suas tentativas de construção coletiva e a organização de uma nova
IC, iniciou um período de reclusão no interior do país (1943 a 1959). Em 1955, sob o
pseudônimo de Lobodón Garra, com o romance Rio abajo retomou a publicação de seus
escritos – ao que se seguiram uma série de ensaios histórico-políticos e de crítica literária.
Liborio Justo permaneceu lúcido e ativo até sua morte, em 2003, aos 101 anos –
mantendo de forma consequente sua precoce rebeldia voltada contra sua própria classe e
contra a opressão social.
2 – Contribuições ao marxismo
Ainda que de linhagem oligárquica, Liborio Justo dedicou sua vida a “lutar contra a caduca
oligarquia conservadora”. Rompeu com uma educação definida por ele como “religiosa e
aristocratizante” e, tocado pela Reforma Universitária e pela Revolução Soviética, iniciou
uma jornada na qual aprofundou a visão crítica de suas próprias origens e das condições
sociais de sua nação e continente. O conforto econômico lhe proporcionou viagens e acesso
à preparação teórica; sua ânsia pelo conhecimento, por compreender o mundo, o
aproximou do marxismo.
Em seus cem anos de vida, desenvolveu múltiplas facetas: viajante, trabalhador nos
quebrachales (campos de extração de madeira), político, jornalista, fotógrafo, ensaísta,
romancista e, sempre, polemista. Foi Quebracho e Lobodón Garra, heterônimos que adotou
como ensaísta político e escritor, respectivamente.
Liborio Justo identificou o cerne dos interesses econômicos da oligarquia argentina e seus
vínculos de subordinação com os imperialismos. Partindo de uma análise da estrutura
econômica e social, completou seu percurso teórico com o estudo crítico da história da
Argentina e da América Latina. Por meio de viagens pelas regiões mais esquecidas do país,
conheceu as formas de exploração, o racismo e a discriminação impostas pela classe
dominante argentina às comunidades nativas. Percorrendo diversas regiões produtivas,
pôde verificar a penetração dos imperialismos britânico e estadunidense – que, com a
complacência das elites dominantes, abriram portas para a pilhagem feita por estes capitais
estrangeiros.
Analisando a estrutura socioeconômica e a realidade nacional, observou a importância
essencial das comunidades indígenas para a identidade da nação, através de sua luta heroica
travada em defesa de seus territórios, de sua liberdade, de suas próprias identidades e
recursos – subjugados pelo colonialismo e, mais tarde, pelas elites proprietárias de terras,
bem como pelo imperialismo.
A caracterização da estrutura econômica e social da Argentina e da América Latina como
um todo foi um dos pontos em que sua análise diferiu dos partidos comunistas e das
diversas vertentes do trotskismo argentino e latino-americano, aspecto essencial que ele
compreendeu tanto em suas viagens pelas áreas rurais mais atrasadas, quanto em seu
estudo crítico da história liberal (visão distorcida que impôs a ideia da Argentina “branca”,
exaltando o gaúcho como símbolo da nacionalidade). Na época, nem os militantes dos
partidos comunistas nem os trotskistas questionavam a visão liberal da história oficial,
minimizando ou ignorando as condições de exploração do trabalho rural, geralmente
realizado em condições pré-capitalistas, desconhecendo a complexidade das questões
sociais e laborais em âmbito rural; concentravam sua ação política nos trabalhadores
assalariados das áreas urbanas (onde, no entanto, era ainda escasso o desenvolvimento
industrial). Justo, assim, os questionou por não abordarem os problemas locais.
A perspectiva anti-imperialista de Justo iniciou-se com os princípios reformistas da Nueva
Generación, aproximando-se de Haya de La Torre e Scalabrini Ortiz. Porém, estas posições
tornaram-se estreitas quando começou a se aprofundar no conhecimento da teoria leninista
do imperialismo – em um período no qual a ordem internacional estava mudando, devido ao
agravamento da crise mundial e da iminente guerra mundial. A questão da penetração
imperialista foi outro eixo essencial de diferenças com os partidos de esquerda: não apenas
a estrutura econômico-social, mas também a penetração de potências estrangeiras
determinou a caracterização que Justo fez da Argentina como um país “semicolonial” –
primeiro, devido à interferência da Grã-Bretanha, depois, dos Estados Unidos. Considerou a
libertação nacional um ponto essencial na luta revolucionária – e esta foi uma das mais
profundas e radicais questões que o distanciaram das correntes trotskistas, que negavam a
importância do imperialismo.
Seu anti-imperialismo também o afastou da perspectiva comunista pró-stalinista e da III
Internacional, que impulsionava a “Frente Única” em aliança com as supostas “burguesias
nacionais”, com vistas a derrubar o fascismo; considerava essas incipientes “burguesias
nacionais” incapazes de levar adiante a luta pela libertação nacional, sendo a classe operária
a principal força revolucionária e anti-imperialista. A partir desta perspectiva antiimperialista, Justo também questionou a política antifascista do PCA que, em função da aliança conjuntural entre a URSS e os EUA, exaltava a presença de Roosevelt na Argentina, qualificando-o como um grande “democrata” e “progressista”, quando em verdade se tratava do presidente de uma potência imperialista.
Outro ponto-chave que o diferenciou das posições socialistas que dominavam o
panorama político nas décadas de 1930 e 1940 foi sua convicção de que somente uma
revolução socialista permitiria mudanças significativas nas condições políticas e econômicas,
processo que deveria ser continental, envolvendo todos os países da América Latina.
Argumentou que tal revolução só poderia ser construída nestes países ainda dependentes,
onde a classe operária não havia sido subornada pelas classes dominantes – como ocorrera
nas grandes potências imperialistas. Nos países latino-americanos, era possível uma
revolução social, pois suas economias, atrasadas devido à deformação imposta pelo
imperialismo, ainda não tinham completado as tarefas “democrático-burguesas”
(inacabadas após o triunfo das revoluções independentistas da América Latina).
3 – Comentário sobre a obra
A produção editorial de Justo e os artigos polêmicos publicados em distintas revistas
foram abundantes. A maior parte de sua obra foi publicada, quase que sistematicamente,
quando já se tinha distanciado de qualquer tentativa de militar por um partido socialista. O
que o movia era a convicção de que suas opiniões, mais cedo ou mais tarde, seriam
conhecidas e que, finalmente, triunfariam seus pressupostos revolucionários.
A história de grande parte de suas origens, a justificativa para a ruptura com sua classe e
o novo caminho que o afastou do núcleo familiar foi traçado por ele mesmo em Prontuario,
una autobiografía, (Buenos Aires: Editorial Fragua, 1940), escrito cedo, aos 36 anos de idade.
No prólogo da publicação, afirma que “lutou em busca do caminho que levasse à libertação
da humanidade, através da ruptura com todas as limitações a que a ordem existente a
submete”, buscando assim “a libertação de si mesmo”.
Seus dois romances tiveram grande repercussão na ocasião de seu lançamento: La tierra
maldita: relatos bravíos de la Patagonia salvaje y de los mares australes (Bs. Aires: Editorial
Cabaut, 1933), e Río abajo (Bs. Aires: Ediciones Anaconda, 1955) – ambos, relatos sociais em
que a descrição meticulosa da natureza nos mostra seu interesse e conhecimento da
geografia e da fauna (o primeiro centrado na Patagônia, e o segundo nos pantanosos esteros
da região conhecida como “litoral”, entre os rios Paraná e Paraguai). Suas histórias são
realistas, descrevendo os movimentos diários de seus habitantes, massas oprimidas e
ignoradas. Río abajo também foi levado às telas do cinema em 1960.
Pampas y lanzas (Bs. Aires: Editorial Palestra, 1962) é uma de suas obras mais
importantes, na qual ele descreve de forma documentada a luta dos povos araucanos em
defesa de suas terras, contra a política de aniquilação e submetimento por parte da
oligarquia argentina – uma luta que terminou com a eliminação do índio, a subjugação do
gaúcho (transformando-o em peão ou em soldado), e o estabelecimento da oligarquia do
gado (que então governaria o país).
No livro A sangre y lanza, o el último combate del Capitanejo Nehuen: tragedia e
infortunio de la Epopeya del Desierto (Bs. Aires: Ediciones Anaconda, 1969) relata os
detalhes da batalha contra os índios araucanos na antiga fronteira do deserto dos pampas.
Com base em pesquisas de documentos oficiais, notas jornalísticas e arquivos (como o da
Sociedad Rural), descreve a campanha de extermínio contra os povos originários para lhes
arrebatar as terras.
Já Masas y balas (Bs. Aires: Edición de la Flor, 1974) traz cinco histórias que reúnem
episódios ocorridos em várias partes da América, entre 1931 e 1935 – “durante os dias mais
dramáticos da crise econômica mundial” –, como a chegada de uma multidão de imigrantes
europeus à Argentina.
Justo desenvolve também a questão do gaúcho e de sua glorificação, ao analisar a figura
de Leopoldo Lugones, em Literatura argentina y expresión americana (Bs. Aires: Editorial
Rescate, 1976), que mais tarde publicou como Cien años de las letras argentinas (Bs. Aires:
Ediciones Badajo, 1998), obra na qual examina a produção literária através de autores que,
em sua concepção, encarnaram as expressões literárias das forças sociais que governam as
sociedades latino-americanas. No capítulo relativo a Lugones, esmiuça a política das classes
dirigentes argentinas – que davam regalias a jovens intelectuais supostamente progressistas,
favorecendo-os com cargos remunerados e sufocando seus ideais revolucionários –, e
denuncia o oportunismo de Lugones, que abandonou o caminho rebelde para se tornar o
“poeta-bobo-da-corte” da oligarquia.
Em Estrategia revolucionaria: lucha por la unidad y por la liberación nacional y social de la
América Latina (Bs. Aires: Editorial Fragua, 1956) descreve uma meticulosa história do
trotskismo na Argentina, questionando duramente seus dirigentes e posições,
estabelecendo as diretrizes que a “vanguarda proletária dos países coloniais” deveria seguir,
e apontando a “revolução agrária e anti-imperialista” como parte de um processo de
“revolução permanente”.
Outro de seus livros polêmicos, que dividiu as águas das correntes trotskistas argentinas,
foi León Trotsky y Wall Street (Bs. Aires: Editorial Gure, 1959), no qual ele caracteriza o líder
russo como um centrista “mais próximo dos mencheviques do que dos bolcheviques”, que
só coincidiu com Lênin durante a queda do czarismo, seguindo uma “prática sistemática de
oportunismo”. Note-se que Justo, considerado um dos fundadores do trotskismo argentino,
foi, no entanto, um crítico ácido de Trótski, questionando-o por inconsistência e falta de
conhecimento dos problemas latino-americanos. Segundo o marxista argentino, o
“imperialismo ianque” era para Trótski “o imperialismo bom, que o ajudava ativamente em
sua luta contra Stálin e acolhia tão bem seus artigos, publicados sempre de forma destacada
nos Estados Unidos”.
Em Nuestra patria vasalla, historia del coloniaje argentino [5 volumes] (Bs. Aires: Editorial
Schapire, 1968/1993), concretiza sua aspiração de reescrever a história nacional. Por mais de
duas décadas, publicou esta grande obra em que analisa a história do país, desde o período
colonial até a última ditadura militar, fundamentando sua caracterização da Argentina como
um país “semicolonial” subjugado aos interesses das classes dominantes proprietárias de
terras e aos imperialistas – primeiro da Grã-Bretanha, logo dos EUA. Com sua reelaboração
da história nacional, crítica da história oficial-liberal, ele fundamenta sua proposta política
revolucionária e sua ruptura com a ordem familiar aristocratizante.
No livro Bolívia: la revolución derrotada (Cochabamba: Rojas Araújo Editor, 1967), Justo
elabora uma análise que parte do Império Inca e vai até a derrota da revolução. As ideias
mais importantes que aqui desenvolve se referem à formação econômico-social boliviana,
em debate com aqueles que consideravam a sociedade incaica um sistema comunista
primitivo. Segundo sua leitura do marxismo-leninismo, avalia que entre os incas
predominava o “modo de produção asiático” e a “escravidão coletiva”; e que é necessário
aos socialistas conhecerem a história deste império, pois a “população quéchua e aimara
permanece viva”, ainda que deformada pela “cultura colonial e republicana”, constituindo
portanto um “rico reservatório para a luta antifeudal e anti-imperialista”.
Liborio Justo também analisa a situação geral da Argentina e do Brasil em Argentina y
Brasil en la integración continental (Bs. Aires: CEAL, 1983), concluindo que a relação entre os
dois países é fundamental para a unidade latino-americana; analisa as economias argentina
e brasileira e sua complementaridade, reafirmando que a libertação e integração da América
Latina depende da integração de ambos os países.
A publicação “Subamérica”: América Latina de la Colonia a la Revolución Socialista [2
volumes] (Bs. Aires: Ediciones Badajo, 1995/1997) aborda inicialmente o período colonial e a
dominação inglesa, e em seguida a dominação ianque ao longo do século XX.
Em Andesia (Bs. Aires: Ediciones Badajo, 2000), Justo volta a um tema recorrente,
referindo-se ao debate sobre o nome do continente americano; argumenta que os Estados
Unidos se apropriaram da palavra “América”, e que a denominação “América Latina” não é
apropriada, já que a população americana “se compõe de índios e negros oprimidos, para os
quais o termo ‘latino’ é sinônimo das nações opressoras”. Assim, propõe o nome Andesia,
que surge do reconhecimento do valor da cordilheira andina como estruturante nesta parte
do continente.
Postumamente, foi publicada sua posição sobre a queda de Salvador Allende, após o
golpe de Estado de 1973, Así se murió en Chile (Bs. Aires: Cienflores y Maipue, 2018) – uma
crônica contendo declarações de forças políticas e partidárias, além de testemunhos de
operários industriais, em que explica a agonia do governo socialista de Allende, para então
voltar a defender a necessidade de uma revolução continental que erradique o imperialismo
e instaure o poder da classe trabalhadora.
Outros artigos e documentos seus podem ser encontrados na rede, caso do portal Liborio
Justo (www.liboriojusto.org).
4 – Bibliografia de referência
BOSCH ALESSIO, Constanza D. “Los orígenes de la Cuarta Internacional en Argentina:
Liborio Justo y el caso del Grupo Obrero Revolucionario y la Liga Obrera Revolucionaria”.
Diálogos Revista Electrónica de Historia, v. 18, n. 1, 2017. Disp.: https://revistas.ucr.ac.cr.
BREGA, Jorge. “La fotografía de Liborio Justo”. Revista La Marea, Buenos Aires, n. 24,
- Disp.: https://revistalamarea.com.ar.
COGGIOLA, Osvaldo. Historia del troskismo argentino (1929-1960). Buenos Aires: Centro
Editor de América Latina, 1985.
GRAHAM-YOOLL, A. “Una recorrida con Liborio Justo por el siglo que termina”
[entrevista]. Página 12, Buenos Aires, fev. 1999. Disp.: https://www.pagina12.com.ar.
__. Liborio Justo: alias Quebracho. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2006.
MATEU, Cristina. “Liborio Justo, filiación de un rebelde”. Revista La Marea, Buenos Aires,
n. 21, 2004. Disp: http://www.liboriojusto.org.
Notas
- Cristina Mateu é professora de História Econômica e Social da Universidad de Buenos
Aires, especializada em Docência Universitária, mestre em História e Políticas Econômicas
(UBA), e pesquisadora da ADHILAC. Autora de, entre outras obras: “Aníbal Ponce en su
recorrido dialéctico” (Ágora, 2014); e “Movimiento obrero argentino” (La Marea, 2016). É
membro do Conselho Crítico Consultivo do Dicionário Marxismo na América. - Com edição de texto de Joana Coutinho e Yuri Martins-Fontes, este artigo foi
originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do
Dicionário Marxismo na América, obra coletiva coordenada por essa organização; permite-se
sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que
seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas:
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