O marxismo de David Alfaro Siqueiros

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Pintor e escritor, participou da Revolução Mexicana (1910), foi ativo militante do Partido Comunista de México e protagonista do Movimiento Muralista – defendendo uma arte revolucionária e em sintonia com as lutas dos trabalhadores

Por Felipe Santos Deveza *

SIQUEIROS, David Alfaro (mexicano; Chihuahua/México, 1896 – Cuernavaca/México, 1974)

1 – Vida e práxis política

David Alfaro Siqueiros, nascido José Jesus Alfaro Siqueiros, foi registrado como sendo natural da Cidade do México; porém, segundo hoje se sabe, nasceu na capital do estado de Chihuahua (Noroeste mexicano). Com cerca de 6 anos, mudou-se para Irapuato, no estado de Guanajuato, onde começou seus estudos.

Aos 12 anos, pintou uma reprodução da Madonna della Seggiola, do artista renascentista Raphael, fato que entusiasmou seu pai para que contratasse o pintor muralista Eduardo Solares Gutierrez como seu professor. Dois anos depois, começou a frequentar a Academia de San Carlos e participou da Escuela de Pintura al Aire Libre, de Santa Anita – experiência que pretendia renovar os exercícios de pintura, naquela época ainda muito ligados à tradição acadêmica europeia clássica e confinados em espaços fechados.

Durante as batalhas da Revolução Mexicana, mais especificamente após o golpe de Victoriano Huerta contra o governo de Francisco Madero (em 1913), alguns alunos da Escuela de Bellas Artes se alistaram entre as tropas revolucionárias; dentre eles Siqueiros, que serviu no Exército Constitucionalista até 1917, quando foi promulgada a nova constituição. Como soldado, viajou por todo o país, conhecendo melhor a cultura mexicana e travando contato com as lutas cotidianas dos operários e camponeses.

Em Guadalajara, o jovem pintor conheceu a sua primeira esposa, Graciela Gachita Amador – que estudava folclore e dirigia teatros de bonecos –, com quem se casou em 1918. Nesta

cidade, Siqueiros ajudou a organizar um congresso de Artistas Soldados e debateu com seus companheiros a polêmica que seguiria como um tema recorrente por várias palestras e artigos durante a sua vida: a relação entre a função da arte e sua forma; ou, de outra maneira, a relação entre política e pintura.

Em 1921, Diego Rivera, que então estava vivendo na Europa, foi convidado por José Vasconcelos – ministro da Educação do governo pós-revolucionário de Álvaro Obregón (1920-1924) – para participar de um projeto que envolvia pintura. A ideia original do ministro era dar continuidade à pintura nas paredes dos prédios públicos com temas educativos dirigidos à população mexicana analfabeta ou com pouco acesso à literatura, à história e à ciência; para tanto, contratou uma série de artistas, entre eles Siqueiros (que regressaria a seu país em 1922), para interpretar a história mexicana e decorar as paredes de dois prédios públicos, no centro da capital. Estes murais inaugurariam o Movimiento Muralista Mexicano, nos anos 1920. Embora o projeto original tivesse um sentido educativo ainda estreito, a influência da entrada de grande parte desses muralistas no Partido Comunista de México (PCM) reorientou o conteúdo da proposta inicial das obras murais; Siqueiros desempenhou um papel fundamental de articulador e porta-voz do grupo. Foi a partir de sua iniciativa que nasceu o Sindicato de Obreros Técnicos Pintores y Escultores (SOTPE), agremiação que fundou o jornal El Machete (1924) – que no ano seguinte se tornou órgão central do PCM. O sindicato, organizado pelos muralistas, foi originalmente influenciado por uma perspectiva anarco-sindicalista – em uma época na qual o marxismo-leninismo apenas começava a ser divulgado no México.

Desde então, e até os anos 1940, Siqueiros se dedicou à construção do Partido Comunista, de sindicatos e de organizações camponesas – como as Ligas Agraristas, influenciadas pelo PCM. Durante esse período, participou mais de greves, reuniões clandestinas, congressos operários e sindicatos, do que propriamente da realização de murais. Sua atividade artística esteve muito direcionada às charges publicadas em jornais operários, às caricaturas e à produção gráfica. O jornal El Machete, a revista peruana Amauta (de Mariátegui), a Correspondencia Sudamericana e El Liberador (onde Tina Modotti e Julio Mella publicaram artigos) tiveram impressos desenhos de Siqueiros – além dos materiais de propaganda dos sindicatos e das Ligas Agraristas.

A partir de 1929, o PCM se tornou ilegal e inúmeros comunistas foram perseguidos. Siqueiros viajou então por diversos países, articulando o movimento comunista; participou do

Congresso Sindical Latino-Americano, em Montevidéu, e representou o PCM na I Conferência Comunista Latino-Americana, ocorrida em Buenos Aires. Nesse meio tempo, havia também visitado a União Soviética (1927-1928), junto com o muralista Diego Rivera, e conhecido pessoalmente Josef Stálin, por intermédio de Vladimír Maiakóvski; este encontro foi narrado em suas memórias, num tom bem-humorado, onde revela, por exemplo, que o líder da URSS aprovava suas críticas sobre o excesso de academicismo na pintura soviética, mesmo depois de dez anos da Revolução Bolchevique.

Em 1930, Siqueiros foi preso por suas atividades sindicalistas; na prisão produziu uma série de pinturas de cavalete e litografias. A partir deste ano, em um contexto de perseguição aos comunistas, os muralistas acabariam tendo que se mudar para os Estados Unidos, onde encontraram um entusiasmado público de jovens artistas interessados na novidade dos afrescos dos pintores mexicanos. Nos EUA, a obra de seu colega Diego Rivera obteve reconhecimento internacional, mas o período também correspondeu à cristalização de divergências entre os muralistas; o interesse pela obra de Rivera estava em sua temática mexicanista, em sua valorização das cores e dos motivos do México popular em composições épicas e ideologicamente engajadas com a luta política da época, expressa na dicotomia “revolução versus capitalismo”. Siqueiros, um inquieto polemista, começou então a criticar a obra de Rivera e a tentar apontar uma outra direção ao trabalho artístico desenvolvido pelos muralistas mexicanos.

Após o golpe de Estado do general Francisco Franco – contra a II República Espanhola (1936) –, Siqueiros se alistou como voluntário nas Brigadas Internacionais; como tenente-coronel, lutou no fronte de batalha da Guerra Civil da Espanha. Após a queda de Barcelona e da ajuda prestada na articulação dos exilados, o comunista mexicano retornou a seu país. Junto à direção do PCM, em 1940, no calor do conflito com os nazistas, participou de uma tentativa frustrada de matar Trótski (que tinha sido considerado traidor pela Internacional Comunista); por causa disto, foi preso por 6 meses, até que Pablo Neruda (poeta e diplomata chileno) intercedeu e o ajudou a obter um exílio no Chile.

Durante os anos 1930 e 1940, os artistas antifascistas mexicanos organizaram a Liga de Escritores y Artistas Revolucionarios (LEAR) e, posteriormente, o Taller Editorial Gráfica Popular, organizações que desenvolveram um consistente trabalho de propaganda socialista, com destaque especial para a atuação de membros como Leopoldo Mendez, Luis Arenal, Pablo O’Higgins, Xavier Guerrero e o próprio Siqueiros, além de promover o resgate de gravadores mexicanos como José Guadalupe Posada e Manuel Marilla – criadores das caveiras catrinas mexicanas –, popularizando a arte revolucionária através das gravuras.

Entre 1941 e 1942, durante um período em que esteve no Chile, Siqueiros produziu outro importante mural – juntamente com Xavier Guerreiro –, chamado Muerte al invasor. Nesta obra, os artistas representaram a resistência latino-americana com figuras de líderes populares do Chile e do México, como Cuauhtémoc, Zapata, Luis Emílio Recabarren e Lautaro, na luta contra o invasor.

Na década de 1950, o marxista fez experiências com o que chamaria de “esculto-mural”, uma pintura sobre uma estrutura esculpida em concreto. Essas obras estão expostas na parte externa de diversos prédios da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Em uma delas, chamada El Pueblo a la universidad, la universidad al pueblo (1952-1956), os estudantes erguem as mãos com seus livros e canetas em direção à sociedade, simbolizando o compromisso dos alunos em retornar o conhecimento produzido pela universidade ao povo mexicano. Em um outro mural, chamado Nuevo símbolo universitario (1952-1956), em que aparecem duas aves de rapina, simbolizando a águia mexicana e o condor andino, ele procurou representar a unidade entre a parte Sul e a parte Norte da América Latina.

Em 1956, Siqueiros começou a pintar uma das salas da antiga residência dos presidentes mexicanos, o Castillo de Chapultepec (atual Museo Nacional de Historia), onde se encontra o famoso mural Del porfirismo a la Revolución, pintado entre 1957 e 1966; neste período (de 1960 a 1964), o pintor esteve preso no Palacio de Lecumberri (Cidade do México), acusado de “dissolução social” – por haver se pronunciado contra o governo.

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, Siqueiros viajou por vários países do bloco socialista, e apoiou firmemente a Revolução Cubana, a Revolução Chinesa e as revoluções anticoloniais. Pouco antes de morrer, conseguiu ainda terminar o Polyforum, espaço que ele próprio denominaria como uma “obra total” – no qual sintetizou suas ideias sobre o muralismo.

Acompanhado por sua companheira Angélica Arenal – com quem viveu junto desde a Guerra Civil Espanhola –, Siqueiros faleceu, em janeiro de 1974, na capital do estado de Morelos, Cuernavaca, sendo sepultado na Rotonda de las Personas Ilustres do panteão civil de Dolores (Cidade do México).

2 – Contribuições ao marxismo

Siqueiros foi o mais jovem entre os três grandes muralistas mexicanos (ele, José Clemente Orozco e Diego Rivera); foi também o que mais atuou politicamente e refletiu a partir do marxismo e do leninismo sobre o sentido da arte que estava produzindo.

Polêmico e voluntarista, Siqueiros é bastante conhecido por sua obra mural, como é caso da mencionada pintura Del porfirismo a la Revolución – em que aparecem zapatistas, com os tradicionais sombreros mexicanos, unidos em uma massa compacta e armada –, ou de seus murais da UNAM e do Polyforum. É também célebre seu engajamento ideológico e político no Partido Comunista de México – tendo sido defensor do legado de Stálin. Contudo, sua participação na vida política e cultural mexicana teve outros episódios formidáveis, e sua obra, fundada no marxismo, apresenta uma importante reflexão acerca da história do México e da América Latina, além de uma interpretação marxista da arte.

Suas contribuições ao marxismo se relacionam à experiência artística de uma maneira geral e estão ligadas à trajetória do Movimiento Muralista Mexicano. Desde o manifesto do Sindicato de Obreros Técnicos Pintores y Escultores, evento que marca o início deste movimento muralista, Siqueiros procurou pensar a arte através do marxismo-leninismo. O próprio manifesto traz reflexões basilares para o debate acerca da arte.

Nos primeiros anos do muralismo valorizou-se muito a superação da separação entre trabalho manual e intelectual, as formas de organização do trabalho, da produção artística e também exaltou-se um dos instrumentos de organização da classe operária, o sindicato. Até o macacão de fábrica seria usado para as pinturas. A centralidade da classe operária no trabalho dos pintores muralistas estava diretamente relacionada ao entusiasmo pela Revolução Russa (1917) e pela expectativa gerada pelo primeiro Estado socialista do mundo.

Da ideia de uma arte que tinha como motivo e como apreciadores a classe trabalhadora mexicana, desdobraram-se outras questões, tais como: o que é arte, ou qual o papel do indivíduo na obra de arte? Sobre estas questões, fundamentais para o marxismo, Siqueiros passou a vida refletindo – e tentando não apenas teorizar sobre o tema, mas colocá-lo em prática. Muitas dessas questões começaram a ser tratadas no manifesto de pintores e logo foram expostas em artigos na década de 1930; entretanto, sempre foram objeto de polêmicas, por vezes públicas, particularmente entre Siqueiros e Diego Rivera – que havia se aproximado de Trótski e André Breton, um dos teóricos do surrealismo. Em um artigo publicado no New Masses, Siqueiros atacou explicitamente Diego Rivera; sua principal critica era a de que Rivera havia se tornado um “esnobe”, e que não apresentava as qualidades de um artista revolucionário.

Mas o enfrentamento direto entre os dois mais famosos pintores mexicanos se deu publicamente quando Siqueiros, em 1934, criticou abertamente Rivera, em uma palestra no Palacio de Bellas Artes, na Cidade do México. Após um bate-boca desorganizado, os pintores se acertaram em continuar o debate em outro dia; a polêmica foi documentada e acompanhada com interesse por artistas, estudantes e pela imprensa. A censura feita por Siqueiros estava centrada na falta de postura crítica de seu opositor ao governo mexicano, particularmente depois das perseguições aos comunistas no início da década de 1930. Também reprovou em Rivera a importância que concedia em suas obras ao papel desempenhado por “indivíduos” na história, além de denunciar sua aliança com “setores reacionários” e com o trotskismo. Em relação à pintura, Siqueiros questionava o apego do colega aos procedimentos antigos para a confecção de obras artísticas, além de seu “atraso” técnico, particularmente por sua insistência com a técnica do afresco; entendia que os marxistas estavam na vanguarda de sua época, inclusive do ponto de vista técnico. Segundo ele, a obra de Rivera estava se constituindo, tanto no aspecto formal como ideológico, como a imagem oficial do nacionalismo reducionista de uma nova burguesia, tornando-o um “turista mental” de seu próprio país – em uma referência ao “turismo” como algo não autêntico, promovido por uma burguesia que não se relacionava com a nação e com suas tradições populares. Rivera respondeu por escrito (dez. 1935) questionando a autoridade do Partido para decidir quem tinha ou não valor; acusou ainda o autoritarismo e a verticalidade com que se debatia a arte, além de denunciar a política da Internacional – que teria passado de uma posição “ultraesquerdista” na China, Alemanha, Espanha e América Central, para uma posição social-democrata no contexto de enfrentamento contra o fascismo. Afirmava também que Siqueiros o criticava por questões “pessoais”, posto que a URSS e o próprio PCM já haviam reconhecido o valor de sua obra entre 1927 e 1929.

A derrota republicana na Espanha inspirou Siqueiros a pintar com Josep Renau, ex-secretário de Cultura da República Espanhola, uma de suas principais obras: Retrato de la burguesia (1939), com 100 metros quadrados, em piroxilina (espécie de tinta laca usada inicialmente na indústria automobilística) sobre concreto, com o uso de aerossóis. A obra explora outras inovações técnicas propostas por Siqueiros, como a utilização dos cantos e do teto em uma perspectiva dinâmica, além do que ele denominou como “poliangularidade”.

Esta perspectiva foi pensada por ele em oposição ao ponto fixo de um observador que olhasse para uma tela tradicional, uma vez que permitia diversas possibilidades de pontos de observação da obra. Em suas reflexões, o autor propôs uma aproximação entre a expressão artística e o sentido que o marxismo confere ao movimento, dialético e inter-relacionado. O mural Retrato de la burguesia, que decora as paredes do Sindicato Mexicano de Electricistas (Cidade do México), expõe o que seria uma interpretação visual do fascismo para os autores: a destruição do parlamento liberal, a militarização e a centralização do executivo, a violência, o imperialismo, a barbárie.

O mural Del porfirismo a la Revolución – finalizado em meados dos anos 1960 – foi projetado para ser visto em movimento, na medida em que o espectador caminhasse pela sala. De uma massa de camponeses e operários, chega-se ao centro da obra, em que aparece uma disputa pela bandeira (com Marx e Engels e os mártires da Revolução); do outro lado, estão representadas as castas que compuseram o regime ditatorial, com Porfírio Diaz ao centro, bailarinas em seu entorno, a classe de intelectuais do regime porfirista (os “científicos”), os membros do Exército e a aristocracia. Nesse mural Siqueiros aplicou novas técnicas de poliangularidade e maneiras de sugerir movimento inspiradas no cinema.

O autor procurou aplicar os princípios do marxismo à arte em todos os aspectos que a envolvem, desde os processos de produção da obra artística até o resultado final. Rejeitou as ideias do gênio artístico, da inspiração criativa espontânea e de qualquer sentido maniqueísta sobre a luta de classes. A política esteve sempre no centro de suas preocupações, mas não de forma dogmática. Suas obras e as questões que elas sugerem são profundas, dialéticas, procurando ligar as particularidades nacionais ao sentido geral da humanidade, a técnica à forma, o indivíduo aos processos históricos, o trabalho manual ao intelectual – inserindo assim a luta do povo mexicano e sua produção artística nos grandes debates políticos e éticos do século XX.

Entendendo a arte em uma perspectiva marxista universal, Siqueiros buscou encontrar uma forma total de expressão artística, que explorasse todos os sentidos, valendo-se do uso de volumes, sons e movimento. Aproveitando-se de um contexto histórico que combinava o reconhecimento nacional do muralismo mexicano, as expectativas com as Olimpíadas de 1968 (na Cidade do México) e o clima de radicalização política em diferentes países, Siqueiros conseguiu encontrar um mecenas que pudesse financiar sua maior empreitada. Assim, já no fim da vida, dedicou-se a sua “obra total”: o Polyforum. Ao invés de ser elaborado na parede de um edifício já construído, Siqueiros projetou um prédio para colocar o seu mural, pintado do lado de dentro e de fora, em todas as paredes e tetos. O edifício tem o formato de um dodecaedro, onde se encontra representada a história da humanidade, desde os tempos primitivos, até a revolução futura – o socialismo. Há uma enorme gama de simbolismos e representações, em traços semifigurativos ou abstratos, que procuram expressar a luta da humanidade por um porvir comunista. No centro do prédio, há uma cúpula central com mais de 9 metros de altura, em que acontecem atualmente eventos artísticos, palestras e apresentações teatrais com espetáculos de luz e som. Nesta obra, o marxista colocaria todas as suas ideias acerca do desenvolvimento do muralismo em prática, e tentaria integrar pintura, escultura, arquitetura, música, teatro e dança. Com mais de 2400 metros quadrados de superfície pintada, o mural é o mais ambicioso trabalho do pintor, tendo sido avaliado como o maior do mundo; é considerada por muitos como sua obra final – bem como do próprio movimento muralista.

Dos inúmeros legados que Siqueiros deixou para a história da arte, vale ainda mencionar os trabalhos de Jackson Pollock, o mais famoso de seus alunos – que embora reconheça a influência de seu professor, trilhou caminhos próprios.

Siqueiros foi, dentre os muralistas mexicanos, o que mais contribuiu para o debate marxista. Neste sentido deixou não apenas um conjunto de obras arte – que estão entre as mais importantes da história da produção artística latino-americana e universal –, mas ainda colocou em debate o significado da arte para os marxistas e socialistas em geral.

3 – Comentário sobre a obra

Segundo o próprio Siqueiros narra em suas memórias (publicadas postumamente) – Me llamaban el Coronelazo (México: Biografías Gandesa, 1977) –, foi durante as andanças entre as tropas Constitucionalistas (pelas quais lutou até 1917) que conheceu o México popular; depois, quando enviado à Europa como adido militar (onde fica até 1921), encontrou com Diego Rivera e os modernistas franceses. Após o impulso nacionalista produzido pela Revolução Mexicana, Siqueiros foi, paulatinamente, descobrindo o marxismo e o leninismo; produziu uma obra escrita vasta em artigos sobre arte e política, embora o que melhor expresse sua contribuição para o materialismo histórico sejam os seus murais. Para ele, arte e política são indissociáveis e, portanto, as pinturas devem ser lidas e interpretadas.

Em Barcelona, publicou o primeiro de seus artigos, um manifesto chamado “Tres llamamientos de orientación actual a los pintores y escultores de la nueva generación americana” (Vida Americana, Barcelona, 1921). O texto foi dirigido aos artistas da América, convocando-os a seguir a vanguarda modernista europeia, mas inspirados nos seus próprios temas nacionais: “aspiremos as teorias baseadas na relatividade da ‘arte nacional’, universalizemo-nos!” – afirma, defendendo que a fisionomia de cada povo deveria se mostrar “inevitavelmente” em suas obras. Nesse sentido, tentava projetar um modernismo nacional que não desaguasse em arcaísmos, ou mesmo no que classificou como “arte decorativa, turística e folclórica”.

Entre sua produção teórica da época está o “Manifiesto del Sindicato de Obreros, Técnicos, Pintores y Escultores” (El Machete, Cidade do México, 1924) – um marco das artes plásticas mexicanas, em grande parte escrito por Siqueiros. Algumas questões reivindicadas pelo manifesto dos muralistas foram: o caráter proletário e popular de sua atividade artística; o entendimento da revolução mexicana como uma revolução social; e, diante dessas circunstâncias, o papel dos pintores revolucionários, “armados” com suas paredes, andaimes e pincéis.

Um de seus artigos – com que abriu o debate que travou com Rivera – chama-se “Rivera’s counter-revolutionary road” [O caminho contrarrevolucionário de Rivera] (New Masses, Nova Iorque, 1934); ao longo dele, Siqueiros buscou retomar questões centrais do manifesto muralista de 1923, como o trabalho coletivo na produção do mural, a necessidade de se desenvolver técnicas modernas, e não apenas se limitar as técnicas do afresco. Em termos de composição, Siqueiros denunciou o “caos” e o “espírito pequeno burguês” de Rivera, quem, segundo ele, estaria a serviço da contrarrevolução no México; lembrou que, entre todos os muralistas, apenas Diego Rivera havia sido agraciado com contratos pelos governos do Maximato (de 1928 a 1934, conhecidos pela perseguição aos comunistas no início dos anos 1930). Acusa ainda Rivera de estar a serviço da nova burguesia mexicana, nascida da contrarrevolução, e de ser próximo ao movimento trotskista e ao ativista estadunidense Jay Lovestone (que havia sido expulso da III Internacional e do Partido Comunista dos EUA).

Outros de seus textos foram editados a partir de anotações e manuscritos elaborados para conferências, em que o artista mexicano reflete sobre marxismo e arte. Dentre esses, estão: “Los vehículos de la pintura dialéctico-subversiva”/“The vehicles of dialectic-subversive painting” (transcrição taquigráfica, 02/10/1932), conferência proferida (parte em espanhol, parte em inglês) no John Reed Club, Los Ángeles (EUA); “La crítica del arte como pretexto literário” (México en arte, Cidade do México, 1948); e “El movimiento pictórico mexicano, el nuevo camino del realismo” (A un joven mexicano, Cid. México, 1967).

Na conferência que dá origem ao texto de 1932, o marxista explorou a relação entre as técnicas de pintura e as ideias revolucionárias que guiavam o movimento muralista; opinava que, se o movimento queria ser revolucionário nos temas de suas pinturas, precisava também ser revolucionário nas maneiras de se produzir um mural; para tanto, era preciso uma nova técnica que permitisse pinturas em superfícies ao ar livre. Siqueiros criticou o trabalho individualista comum na pintura de cavalete e convocou uma transformação da técnica que acompanhasse os anseios revolucionários dos muralistas. A estética revolucionária não deveria ser nem acadêmica, nem modernista, mas “dialético-subversiva”, adequando-se ao novo sentido da revolução humana: a revolução proletária.

Já em seu ensaio de 1948 – “La crítica de arte como pretexto literario” –, Siqueiros estava preocupado em refutar as tendências artísticas parisienses, que influenciavam o Ocidente no pós-guerra. O objeto de suas condenações eram exatamente os críticos de arte formalistas e “arte-puristas”, como ele os denominou, considerando que não eram “pintores”, mas “escritores”, e como tal careciam de conhecimento técnico e prático. Além disso, buscavam opinar a partir de superficialidades, do puro gosto pessoal, do instinto; o resultado era a despolitização da arte, a ideia de que poderia existir uma “arte pela arte”. O marxista atravessa o texto opondo-se à ideia de que a despolitização da arte é condição para a autenticidade artística.

Por fim, no citado texto de 1967, passados mais de 40 anos desde o manifesto de pintores, Siqueiros procurou encontrar, na História da Arte, o lugar do muralismo mexicano e do seu próprio legado; encontrar um sentido na arte, com períodos de luz e obscurantismo, desde a arte da Antiguidade, passando por Da Vinci, Masaccio, Uccelllo e Cimabue, até chegar ao realismo – que acredita ser o espaço que os muralistas ocupam nessa cronologia. O “novo caminho do realismo”, proposto por ele, está relacionado à interpretação da realidade social produzida pela linguagem plástica, e não necessariamente a formas com pretensão “fotográfica”, associadas à ideia comum de realismo. Entende que a realidade social está relacionada à ideologia, à ciência, o que concebe como uma perspectiva que além de marxista é também “humanista”: um “novo-humanismo” que supera os limites burgueses da arte no capitalismo.

Décadas depois, vários desses escritos de Siqueiros foram organizados e publicados pela Secretaría de Educación Pública mexicana com o título Selección de textos (Cid. México: SEP, 1974), reunindo reflexões produzidas em diversos momentos de sua vida.

Recentemente, foram também publicadas importantes conferências, até então inéditas, ministradas por Siqueiros. São textos que debatem o sentido da arte revolucionária e marxista na América Latina, suas características e perspectivas. Reunidas em um livro chamado Fundación del Muralismo Mexicano: textos inéditos de David Alfaro Siqueiros (org. Hector Jaime/ Cid. México: Siglo Veintiuno, 2012), a seleção nos brinda com três momentos das polêmicas abertas pelo pintor. No texto “Conferencia sobre arte pictórico mexicano” (manuscrito, 1935), o autor reflete sobre a relação da atividade política do pintor e sua obra. Defende a necessidade do artista revolucionário se portar como um militante comunista, isto é: ter disciplina, objetivo e direção proletária. Entende que tais características têm implicações sobre o resultado da obra; o mural, por exemplo, deveria estar em ambientes externos e ter uma composição dinâmica que correspondesse a um espectador ativo, não estático. Chamada de poliangularidade, tal perspectiva corresponderia à introdução do materialismo histórico-dialético nas obras de arte. Nas palestras intituladas “Conferencia de Argentina” (manuscrito, 1930) e “El Sindicato” (manuscrito, anos 1930), ele apresenta o sentido do muralismo mexicano, em uma época na qual sua presença, assim como a de Orozco e Rivera, haviam despertado muito interesse pelos pintores revolucionários do México; em ambas, explana como surgiu o muralismo mexicano, como se constituíram as técnicas de pintura mural, quais os limites do afresco e qual o sentido que deveriam dar ao movimento muralista. Particularmente em “El Sindicato”, destaca o papel da organização dos trabalhadores como a elemento-chave para se impulsionar a pintura mural. Outros temas recorrentes tratados nos textos são: a “integração plástica”, ou seja, a utilização de diversas técnicas e superfícies de expressão artística, como escultura, murais, cinema; a “monumentalidade”, ou seja, a necessidade de se pintar grandes obras em áreas de circulação popular; o “coletivismo” na criação artística, ou seja, a ideia de que a produção da obra artística é um processo coletivo e não fruto de um gênio individual; o “muralismo público” versus o “muralismo interior”; a “arte de massas” e “para as massas”; e a “superação da estética burguesa”. Com relação a sua obra artística, seus murais mais destacados são: Ejercicio plástico (1933), onde o artista explora toda a superfície das paredes em forma de túnel, com o uso inovador do aerógrafo. Retrato de la burguesia (1939), pintado em uma escadaria do Sindicato

Mexicano de Electricistas, foi resultado de um trabalho coletivo junto a pintores espanhóis exilados (como Josep Renau). Esse mural faz uma interpretação acerca do entendimento dos autores sobre o fascismo, pouco antes do início da II Guerra Mundial; nele, aparecem militares guiados por um ditador destruindo o Parlamento e a “democracia”, uma representação da morte, do poder do capital, do colonialismo, a violência contra crianças, o fogo, a guerra industrial, máscaras de gás, massacres. É, contudo, na década de 1940 que Siqueiros se consolida como um dos grandes muralistas do movimento mexicano, pintando Muerte ao invasor (1941-1942), Cuauhtémoc contra el mito (1944) e Nueva democracia (1944 e 1945). Os dois murais que consagraram seu trabalho na história visual do mundo foram Del porfiriato a la Revolución, o la Revolucion contra la ditadura porfirista (1957-1966), e o mural La marcha de la humanidade (1971), localizados, respectivamente, no Museo Nacional de Historia, e no Polyforum Cultural Siqueiros, ambos na Cidade do México.

Muitos dos escritos e pinturas de Siqueiros podem ser acessados em formato digital, disponíveis na rede em portais como: do International Center for the Arts of the Americas at the Museum of Fine Arts – Houston/EUA (https://icaa.mfah.org); do Museo Nacional de Historia – México (https://mnh.inah.gob.mx); da Sala de Arte Público Siqueiros (http://saps-latallera.org/saps); e do Consejo de Monumentos Nacionales de Chile (https://www.monumentos.gob.cl).

4 – Bibliografia de referência

BARBERENA, Lucia Andrea Vinatea e NAVA, Alfredo. “David Alfaro Siqueiros e seu Polyforum: a política como espaço artístico”. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, jan/jun. 2020.

CRUZ MAJARREZ, Maricela González. La polémica Siqueiros-Rivera: planteamientos estético-políticos (1934-35). México: Museo Dolores Olmedo Patiño, 1996.

GUADARRAMA PEÑA, Guillermina. La ruta de Siqueiros – etapas en su obra mural. México: INBA, 2010.

HERNER, Irene. Siqueiros: del paraiso a la Utopia. México: SCDF, 2010.

LEAR, John. Imaginar el proletariado, artistas y trabajadores en el México revolucionário (1908-1940). México: Sindicato Mexicano de Electricistas/Grano de Sal, 2019.

CARRILLO AZPEITIA, Rafael, “Introducción”. Em: SIQUEIROS. David Alfaro. Siqueiros. México: SEP, 1974.

ROCHFORT, Desmond. Mexican muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros. São Francisco: Chronicle Book, 1998.

POLYFORUM SIQUEIROS [Catálogo]. El legado de dos visionarios. Cidade do México: Polyforum Siqueiros A. C., 2012.

RUIZ ALONSO, José María . “David Alfaro Siqueiros en el frente sur del Tajo (1937-1938)”. Anales Toledanos, n. 30, 1993. Disp.: https://realacademiatoledo.es.

SUBIRATS, Eduardo. El muralismo mexicano: mito y esclarecimiento. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2018.

Notas

* Felipe Santos Deveza é coordenador do Núcleo Práxis-USP e editor do Dicionário Marxismo na América; professor de História na rede pública e professor universitário de História da América; bacharel em História (UFRJ), é doutor em História Comparada (UFRJ/UNAM), com pós-doutorado em História da América Latina (UFF). Autor de, entre outras obras: O movimento comunista e as particularidades da América Latina (UFRJ/ UNAM, 2014).

* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes e Pedro Rocha Curado, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário Marxismo na América, obra coletiva coordenada por essa organização; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: [email protected].

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