O marxismo de Raya Dunayevskaya

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Jornalista, tradutora, editora e filósofa, trabalhou com Trótski, foi precursora do chamado “humanismo marxista” e se dedicou a ampliar as lutas sociais para além do recorte de classe, buscando integrar pautas do movimento feminista e negro

Por Solange Struwka e Giovanna Imbernon *

DUNAYEVSKAYA, Raya; Raya Shpigel; Rae Spiegel; “Freddie Forest”; “Freddie James” (russo-ucraniana-estadunidense; Yaryshiv/Império Russo, 1910 – Chicago/Estados Unidos, 1987).

1 – Vida e práxis política

Raya Dunayevskaya, nascida Raya Shpigel, é oriunda da região ocidental do antigo Império Russo, atualmente o estado (oblast) de Vinnytsia, na Ucrânia (fronteira com a Moldávia). De sua cidade natal, acompanhou o processo revolucionário que transformaria a Rússia imperial na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

As duras condições locais de subsistência, o difuso ambiente antissemita e os efeitos da Guerra Civil Russa (1918-1922) fizeram com que, em 1922, sua família decidisse emigrar para os Estados Unidos (EUA) em busca de melhores condições de vida. Sem acesso à educação formal e falando apenas iídiche, Raya Shpigel (cujo nome passou a ser grafado Rae Spiegel no novo país) chegou ao gueto judeu de Chicago aos 12 anos de idade – quando afirmou ter visto, pela primeira vez, uma pessoa negra. Ali, sua família conviveu com discriminações e preconceitos por conta da religião e da condição de imigrante. Tal ambiente foi importante para a formação intelectual e militante de Dunayevskaya, a ponto de ela se considerar produto de duas “revoluções”: a da Rússia de 1917 e a dos guetos de Chicago.

Começou a se interessar por política e pelo marxismo já na adolescência, a partir de sua ativa participação junto aos movimentos negros. Em 1925, filiou-se ao Negro Labor Congress (NLC)

[Congresso Operário Negro] dos EUA –, uma organização que lutava contra a exploração dos trabalhadores e a discriminação racial sofrida pelos afroestadunidenses – passando a trabalhar na equipe de seu jornal, o The Negro Champions [Os Campeões Negros]. Em seguida, integrou-se à Young Communist League [Juventude Comunista] do Communist Party of the United State of America [Partido Comunista dos Estados Unidos da América] (CPUSA) – do qual seria expulsa em 1928 por ter questionado os motivos pelos quais Leon Trótski fora banido do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e da Internacional Comunista (IC). Por este tempo, aproximou-se do grupo de trotskistas de Boston que, excluído do CPUSA, fundou a Communist League of America [Liga Comunista da América] – organização dirigida por Antoinette Buchholz Konikow, médica marxista que militava pelo direito das mulheres à anticoncepção e ao aborto.

Na década de 1930, Raya adotou o nome de solteira de sua mãe, Dunayevskaya. Em 1937, apesar de não ter permissão da organização de trotskistas, viajou ao México, para se aproximar de Trótski, então exilado na capital do país. Entre 1937 e 1938, aprendeu russo de maneira autodidata, intensificou diálogos e se tornou secretária e colaboradora do líder revolucionário – embora ainda sem autorização das organizações político-partidárias. Tudo isso em meio ao turbilhão político em torno dos chamados Processos de Moscou (série de julgamentos de opositores de Josef Stálin, movidos pelo governo soviético) e da Comissão Dewey (que averiguava as acusações contra Trótski durante estes julgamentos).

Com o falecimento de seu pai e irmão, regressou a Chicago em 1938. No ano seguinte, havendo começado a II Guerra Mundial, Dunayevskaya rompeu com Trótski – por discordar de suas declarações em favor do posicionamento soviético no confronto, especialmente no que se referia ao acordo de não-agressão assinado pela URSS e pela Alemanha nazista (conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop). Seu afastamento de Trótski e do trotskismo foi duplo: físico, pois voltou a viver nos EUA; e teórico, uma vez que, imersa na realidade estadunidense, passou a entender o modelo “socialista soviético” à luz do conceito de “capitalismo de Estado” – isto é, segundo ela, a URSS se tornara uma forma de “Estado capitalista” – enquanto para o líder opositor exilado, apesar dos problemas que apontava, continuava a ser um “Estado de trabalhadores”.

Em 1941, Raya sistematizou esta discussão, publicando em um boletim do Workers Party [Partido dos Trabalhadores] (WP) – partido ao qual se integrara no ano anterior – seu primeiro

texto com maior impacto: “The Union of Soviet Socialist Republics is a capitalist society” [“A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é uma sociedade capitalista”], trabalho assinado com um pseudônimo (Freddie James), no qual se contrapôs à visão da maioria dos membros do partido, que entendiam a URSS como uma sociedade “coletivista burocrática”.

No mesmo período, intensificou sua atuação junto aos movimentos negros, aproximando-se de C. L. R. James (que usava o pseudônimo J. R. Johnson) – autor do clássico The black jacobins [Os jacobinos negros]. Ambos tinham posições críticas semelhantes acerca do afastamento do Estado soviético do que imaginavam ser sua orientação original. Em 1945, fundaram juntos, dentro do WP, uma corrente marxista que viria a ser conhecida como “humanista” – também chamada de Johnson-Forest Tendency –, a qual contou com a contribuição de Grace Lee Boggs (de pseudônimo Ria Stone). Dentre os temas centrais abordados pelo grupo, estavam: o pensamento de Hegel e seu impacto na produção intelectual de Marx; e a questão étnica e o racismo.

No ano de 1947, Raya Dunayevskaya participou da conferência da IV Internacional, em Paris, apresentando sua polêmica concepção sobre o que seria o “capitalismo de Estado” – ocasião em que se contrapôs aos argumentos do líder trotskista Ernest Mandel.

Já no início dos anos 1950, a autora rompeu também com C. L. R. James. Neste tempo, ela atuou ativamente nas greves dos mineiros da Virgínia Ocidental (1949-1950), com cujas lideranças manteve fortes relações dentro e fora do âmbito do movimento grevista. A partir desta experiência, passou a analisar a presença e a participação de mulheres – esposas dos mineiros – nas greves. Verificando que eram retratadas pela imprensa como aquelas que tão somente acompanhavam os atos políticos, tratou de destacar nelas a função de ativistas – notando ainda que, por vezes, eram elas próprias que impulsionavam a movimentação dos homens. Ao observar que as intervenções realizadas pelas esposas não ocorriam apenas nos atos da greve, mas no interior das residências, desenvolveu seu conceito de “revolução diária em casa” – afirmando ser esta “uma nova dimensão dada à política pelas mulheres”. Criticou ainda a falta de reconhecimento real das lideranças femininas, compreendendo-as como “um núcleo de força social central” para o movimento de trabalhadores.

Em 1953, Raya Dunayevskaya mudou-se para Detroit. Dois anos depois, fundou e se tornou presidenta da organização socialista revolucionária News and Letters Committees [Comitês de Notícias e Cartas], na qual também ficou encarregada da edição do jornal News & Letters [Notícias e Cartas]. Em 1958, por meio desse mesmo grupo, publicou Marxism and freedom: from 1776 until today [Marxismo e liberdade: de 1776 até a atualidade]. Esta foi uma de suas principais obras sobre o pensamento marxista e corresponde ao primeiro volume da chamada “Trilogia da Revolução”, composta por três de seus mais relevantes livros. Após a publicação, viajou pela Europa, África e Ásia (Japão e a cidade de Hong Kong), proferindo várias conferências e participando de debates.

Na década de 1960, frequentou o Universities Research Center [Centro de Pesquisa Universitária] de Hong Kong, período no qual se dedicou a estudar o modelo social e econômico chinês, o arranque da Revolução Cultural (1966-1976) e a política de Mao Tsé-Tung. Com base nestas pesquisas e em entrevistas sobre o tema, publicou em 1977 um folheto intitulado Sexism, politics and revolution in Mao’s China [Sexismo, política e revolução na China de Mao].

O final dos anos 1960 e início dos 1970 foram marcados por sua ativa participação e análise dos movimentos pela libertação das mulheres, protagonizado por militantes negras e latino-americanas. Intelectual e revolucionária atenta às reivindicações das trabalhadoras e trabalhadores, demonstrou interesse em aprender com os diferentes tipos de pensamentos e formas de expressão – postura que considerava condizente com os ensinamentos de Marx sobre a fundamental relação entre a “prática” e a “teoria”. Criticou o engessamento do debate teórico, afirmando-o como um produto da cegueira intelectual frente ao “movimento da prática”. Segundo Raya, para se desenvolver “o movimento dialético” era preciso “voltar-se para o mundo real” – e neste sentido, defendeu a ideia de que os trabalhadores, com suas lutas concretas, realizavam e aprofundavam “o movimento da prática à teoria”.

Em 1973, publicou o segundo tomo da sua trilogia – Philosophy and revolution: from Hegel to Sartre and from Marx to Mao [Filosofia e revolução: de Hegel a Sartre e de Marx a Mao]. Nove anos mais tarde, lançou o terceiro e último volume, intitulado Rosa Luxemburg, women’s liberation, and Marx’s philosophy of revolution [Rosa Luxemburgo, libertação das mulheres e a filosofia da revolução de Marx].

Em meados da década de 1980, pouco antes de falecer, a marxista se empenhou no desenvolvimento de uma reflexão sobre a relação entre filosofia e organização política. Para isto, planejou a elaboração da obra Dialectics of organization and philosophy [Dialética da organização e da filosofia] – livro que, com sua morte, em junho de 1987 (Chicago, EUA), ficaria inacabado, embora com importantes apontamentos manuscritos (parte deles publicados postumamente).

2 – Contribuições ao marxismo

A obra de Raya Dunayevskaya constitui uma peça importante para a história do pensamento marxista, trazendo aportes originais aos debates sobre os caminhos da emancipação humana. Intelectual e revolucionária, dedicou-se a analisar o pensamento de Karl Marx na sua integralidade – assim como a defendê-lo.

A fim de ressaltar que os escritos de Marx, desde o início, e até suas últimas análises, são marcados por uma profunda preocupação com a diversidade dos aspectos humanos, indo para além da economia – caso dos valores e estruturas de sociedades não-europeias e pré-capitalistas, e das desiguais relações de gênero – Dunayevskaya se debruçou sobre muitos dos trabalhos do pensador alemão, inclusive seus últimos estudos, conhecidos como Cadernos etnológicos (publicados apenas em 1972).

Para ela, as questões levantadas pelo humanismo (pensamento que fundou a sociedade burguesa) e a dialética são elementos centrais para uma crítica da sociedade capitalista. Deste modo, opõe-se à fragmentação artificial com que foram por vezes compreendidas as ideias de Marx, erro que ela considera ter levado a uma ampliada aplicação vulgar do marxismo, reduzindo-o a uma análise estritamente econômica.

Fundamentalmente, Raya defendia a necessidade de que se interprete cada época histórica a partir do método desenvolvido por Marx: um processo que mostrará, a cada geração, e segundo sua própria realidade, o significado das concepções deste pensador revolucionário. Compreendia ser necessário desenvolver a “filosofia da revolução”, já que Marx não deixou um legado estático, mas um corpo vivo de ideias e perspectivas que precisam ser concretizadas. “Todos os momentos do desenvolvimento de Marx, bem como a totalidade de suas obras – afirmou ela – explicitam a necessidade de uma ‘revolução na permanência’”.

Nesse sentido, a marxista buscou contribuir para compreensão das crises e desafios – objetivos e subjetivos – que emergiram à sua época, tais como a “contrarrevolução” capitalista que ela entendia se processar dentro da revolução na URSS; e o surgimento de variados sujeitos revolucionários e movimentos sociais em diversos países.

Em relação à União Soviética, Dunayevskaya realizou estudos teóricos sobre as transformações econômicas e sociais dos anos em que Stálin esteve no poder. De acordo com ela, os Planos Quinquenais, iniciados em 1928, ainda operavam segundo a “lei do valor” – isto é, a economia soviética continuava a se organizar em torno da “produção de mercadorias”, como ocorria nas sociedades capitalistas. Daí, inferiu sua ideia de que a URSS seria um “capitalismo de Estado”. Tal opinião, original à época, contrapunha-se às interpretações de destacados marxistas como: Max Shachtman, para quem a conquista do poder estatal pelos bolcheviques tinha significado a destruição das relações de propriedade na URSS, fazendo com que a sociedade caminhasse para um “socialismo de Estado burocrático”; e Leon Trótski, que entendia ser a URSS uma sociedade “em transição” entre o capitalismo e o socialismo. Sobre o tema, em 1944 ela se envolveu também em um debate no interior do próprio WP com Joseph Carter (de pseudônimo Joseph Friedman), um dos expoentes do partido, que defendia a ideia de que o modo de produção soviético não poderia ser tido como capitalista, pois não era dominado pelo “impulso dos capitalistas por lucros” (que ele considerava a força motriz da acumulação capitalista).

Contrária a tais perspectivas, Raya sustentou sua proposição, argumentando que o fator determinante para uma análise da natureza de classe de uma sociedade não passaria por verificar se os meios de produção são propriedade privada da classe capitalista ou propriedade do Estado, mas sim pela caracterização ou não desses meios de produção como capital – isto é, por saber se eles estão ou não sujeitos ao controle monopolizado dos donos do capital e separados de seus produtores diretos. Em suma, ela avaliava que as diferenças entre capitalismo e socialismo não se assentam na distinção entre a propriedade privada de capitalistas individuais e a propriedade nacionalizada, mas nas formas de trabalho e planejamento da produção geridas ou não diretamente pelos trabalhadores.

Em seu percurso, ainda que distante da realidade da revolução soviética, buscou entender a formação do que entendia ser um “capitalismo de Estado”, procurando conceber seu surgimento a partir de uma revolução que tinha por intuito dar início à construção do socialismo. Tais pesquisas fizeram com que ela avançasse em reflexões e sistematizações próprias da tradição marxista, vindo a impulsionar uma nova corrente conhecida como “humanismo marxista” – de que é considerada precursora. Nesta linha, destacam-se três eixos fundamentais: o primeiro diz respeito ao aspecto econômico, em que se pretende evidenciar o surgimento do que seria um outro tipo de capitalismo, o “capitalismo de Estado”; o segundo refere-se às questões filosóficas, enfatizando as preocupações “humanistas” como fundamentais e presentes em toda a obra de Marx; e o terceiro trata do âmbito político, debatendo as relações entre as classes, os movimentos sociais e as revoluções, e buscando articular a organização e a subjetividade revolucionária. Ressaltando que elementos centrais do pensamento de Marx já estavam expostos em seus Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o humanismo marxista dirige críticas a correntes do marxismo que acreditavam haver uma separação entre o que Marx escreveu em sua juventude e os textos de sua maturidade; defende a ideia de que a “filosofia humanista é o fundamento de toda a teoria marxista” – a qual não pode ser fragmentada em “economia”, “política” ou “sociologia”.

Raya Dunayevskaya, desde seus primeiros escritos, já salientava a necessidade de se compreender a teoria marxista de modo “totalizante”, recusando a visão estrita do economicismo e pondo ênfase na posição do militante comunista como um “sujeito revolucionário” – sem o que a ideia de revolução ficaria reduzida a uma abstração. Além desta indivisibilidade do pensamento de Marx, identifica a característica “humanista” do marxismo como fruto da noção de “liberdade humana”, desenvolvida por Marx em sua teoria da “alienação” – que trata da cisão que aliena o trabalhador daquilo que é o produto de seu trabalho.

Para Raya, a questão da alienação se coloca como um ponto de partida tanto para seu debate político (enquanto membro do Workers Party), como para sua defesa de um marxismo interseccional (cuja luta unisse os vários grupos sociais). Tal interseccionalidade se tornou o ponto fulcral da sua práxis política – de seu envolvimento com a luta dos trabalhadores nos Estado Unidos: um movimento multidimensional que atentava às várias esferas da vida dos indivíduos em sociedade, sem se limitar a nenhuma delas, estando lado a lado e inter-relacionando o movimento negro, o das mulheres e o dos imigrantes, entre outros.

Neste sentido, a marxista deu especial relevância à necessidade de se abolir a artificial divisão entre os trabalhos “manual” e “intelectual” – característica da sociedade de classes. Ademais, Raya Dunayevskaya se movia pela ideia da inseparabilidade entre experiência e pensamento revolucionários. Assim como em sua forma de pensar, ela carregava no seu modo de ser esta conexão – isto é, como ela mesma definiu: era impossível separar suas “motivações pessoais” das “políticas”, já que eram esferas de um mesmo ser, permeadas por um único conjunto de conceitos políticos, filosóficos e revolucionários.

Dunayevskaya esteve fortemente envolvida com os chamados movimentos por direitos civis; neste âmbito, reafirmou a necessidade dos movimentos negro e de mulheres lutarem pela libertação e revolução nos Estados Unidos, frisando a importância tanto do movimento negro como do feminista para a interseccionalidade do marxismo e da revolução. Em relação aos debates realizados acerca das lutas antirracistas, ela evidenciou a questão racial como parte da luta de classes e do projeto de superação do capitalismo – uma concepção distinta da predominante à época, que assumia a demanda por direitos civis como passível de ser alcançada sob o capitalismo. Argumentou que era falsa a concepção de que Marx teria defendido a luta de classes como sendo uma única prioridade, ou que o racismo e a supremacia masculina poderiam ser superados no regime capitalista, apontando para a necessidade da realização de uma luta contínua, liderada pelos movimentos de libertação das mulheres e dos negros.

A autora destacou ainda a importância do novo movimento feminista surgido nos anos 1960, assim como a incorporação da luta antirracista e das “lutas das feministas chicanas, das indígenas estadunidenses e das mulheres porto-riquenhas” nesse novo movimento. Insistiu veementemente na luta contra o dogma de classe como opressão primária, do capitalismo como a única fonte de todas as opressões. Em sua concepção, as mulheres, mais do que uma “classe”, eram uma “casta”, um grupo oprimido apenas pelo fato de ser mulher; compreendia que elas não eram só uma força revolucionária – que contribui para produzir as rachaduras, dar suporte e impulso aos enfrentamentos, organizações e transformações sociais –, mas que eram também a “razão”, as iniciadoras, as intelectuais, as estrategistas, as criadoras de algo novo.

No que diz respeito a suas contribuições teóricas relativas às nações da chamada periferia do sistema capitalista, o marxista e parceiro de Raya, Eugene Gogol, aponta contribuições imprescindíveis da intelectual revolucionária, tais como sua crítica e ativismo contra a intrusão do imperialismo estadunidense na América Latina, bem como suas reflexões sobre a natureza inacabada das revoluções latino-americanas.

3 – Comentário sobre a obra

A obra de Raya Dunayevskaya é extensa, podendo ser dividida em dois grandes grupos: os livros; e os panfletos e artigos. Seus trabalhos, em sua maior parte, encontram-se bem conservados e documentados na Walter P. Reuther Library – Archives of Labor and Urban Affairs, da Wayne State University (Detroit, Michigan, EUA); o acervo é resultado de uma doação feita pela própria autora, em 1969. Filósofa e militante engajada, ela produziu uma obra variada, que inclui diversas análises sobre temas que vão desde o estudo das obras de autores como Hegel, Marx e Rosa Luxemburgo, até questões políticas centrais de seu tempo (como o imperialismo e o colonialismo).

Seu primeiro livro publicado, Marxism and freedom: from 1776 until today (Nova Iorque: Bookman Associates, 1958), foi elaborado como parte de suas tarefas à frente do News and Letters Committees. Nele, a filósofa recupera as bases teóricas do humanismo de Karl Marx, passando da Revolução Industrial a outros importantes momentos da história, fazendo uso da filosofia hegeliana e procurando apresentar o percurso da luta do proletariado e do pensamento revolucionário. A obra traz também traduções para o inglês, inéditas naquela época, de dois ensaios que fazem parte dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx (“Propriedade privada e comunismo” e “Crítica da dialética hegeliana”), além de um escrito de Lênin (“A ciência da lógica de Hegel”).

Philosophy and revolution: from Hegel to Sartre and from Marx to Mao (Nova Iorque: Dell Publishing Co., 1973) foi seu segundo livro publicado – tendo sido traduzido para o espanhol, italiano e alemão. Na obra, faz uma análise da dialética de Hegel e de Marx, buscando compreender como isso se traduziu na filosofia de Lênin, Mao, Sartre e no pensamento do pós-guerra. Além disso, discorre sobre a importância da subjetividade nas forças de negação do capitalismo, o que compreende como central para a libertação humana.

Junto com os dois livros anteriores, Rosa Luxemburg, women’s liberation, and Marx’s philosophy of revolution (Atlantic Highlands–EUA/Sussex–Inglaterra: Humanities Press/Harvester Press, 1982) completa a chamada “Trilogia da Revolução”. Neste texto, a autora apresenta uma ampla interpretação do pensamento de Rosa Luxemburgo, além de tratar de conceitos como racismo, gênero e revolução dentro do contexto estadunidense da época. É considerado por muitos estudiosos de sua obra o primeiro livro que versa sobre o caráter feminista da filosofia de Rosa, também pioneiro em oferecer uma análise sobre a questão de gênero nos Cadernos etnológicos de Marx.

Cabe ainda menção ao manuscrito que Raya deixou inacabado (devido a seu falecimento) – Dialectics of organization and philosophy (1987) –, em que a marxista reflete sobre a “dialética do partido” e a “dialética da organização”, no caminho de pensar sobre a crucial relação entre filosofia e organização na vida humana. Nos textos, aborda temas como a questão da organização revolucionária e sua relação com o movimento de massas, além da possibilidade de uma sociedade em que os seres humanos possam vir a desenvolver suas potencialidades integralmente, a partir da superação da divisão entre o “trabalho intelectual” e o “trabalho manual”. Muitos destes escritos foram incluídos no volume XIII (suplemento) da coleção de microfilmes The Raya Dunayevskaya colecction (Detroit–EUA: Raya Dunayevskaya Memorial Fund, 1981).

Após a sua morte, alguns de seus textos sobre Hegel, Marx e a dialética foram reunidos por Peter Hudis e Kevin B. Anderson na publicação intitulada The power of negativity: selected writings on the dialectic in Hegel and Marx (Lanham–EUA: Lexington Books, 2002). O enfoque da coletânea é a relação entre a corrente humanista-marxista e o conceito de “absoluto” em Hegel. Além deste estudo, traz um compilado de correspondências da autora com outros importantes marxistas como Erich Fromm, Louis Dupré, C. L. R. James, Charles Denby (autor de Indignant heart: a black worker’s journal, 1978) e Herbert Marcuse (com quem manteve uma série de escritos emblemáticos sobre polêmicas em torno da filosofia hegeliana, a subjetividade humana, a relação dialética entre “necessidade” e “liberdade”).

Raya Dunayevskaya também escreveu muitos textos que foram publicados em jornais, panfletos e boletins ligados a movimentos políticos, partidos ou mesmo à academia. Dentre eles

podemos destacar: “The Union of Soviet Socialist Republics is a capitalist society” (Internal Discussion Bulletin of the Workers Party, mar. 1941), escrito com o pseudônimo Freddie James, texto que foi considerado pela autora um dos seus mais importantes, pois que é o princípio de sua discussão sobre a ideia de “capitalismo de Estado”, antes mesmo de colaborar com C. L. R. James.

Outros de seus escritos trazem aportes para os movimentos sociais e debates sobre racismo e gênero nos Estados Unidos, como: “Negro intellectuals in dilemma” [“Intelectuais negros em dilema”] (New International, Nova Iorque, v. X, n. 11, nov. 1944); “[North-]American civilization on trial: black masses as vanguard” [“Civilização estadunidense em julgamento: as massas negras como vanguarda”] (News & Letters, Chicago, 1963); e a coletânea de textos Women’s liberation and the dialectics of revolution: reaching for the future – a 35-year collection of essays (historic, philosophic, global) [A libertação das mulheres e a dialética da revolução: alcançando o futuro – coleção de 35 anos de ensaios (históricos, filosóficos, globais)] (Atlantic Highlands–EUA: Humanities Press, 1985). Neste último – uma coleção de artigos, entrevistas, cartas e conferências produzidas ao longo de décadas –, Dunayevskaya retoma e desenvolve seus conceitos fundamentais desde uma nova perspectiva: avalia seus escritos, reitera e corrige seus posicionamentos; desenvolve reflexões que revitalizam o debate sobre a libertação das mulheres no mundo e ao longo da história, abordando inclusive os movimentos de que participou.

A organização News and Letters Committees editou também uma grande lista de panfletos e textos de sua autoria, publicados no periódico News & Letters (https://newsandletters.org) e em jornais e revistas ligados a movimentos políticos e sociais.

Além disso, grande parte dos seus trabalhos foi digitalizada e pode ser acessada livremente na rede, em portais como o Marxists (www.marxists.org), no qual se encontra o “Raya Dunayevskaya Archive”, com a edição digital de diversos de seus textos originais, entre eles um guia sobre os seus escritos, intitulado “Guide to the The Raya Dunayevskaya colecction” (Marxists, 2020).

Apesar de seu importante papel como tradutora de textos fundamentais para o marxismo, a obra de Raya não foi muito traduzida, embora haja versões em espanhol, francês e algo em português.

Em espanhol, cabe destaque para a antologia La filosofía de la revolución en permanencia de Marx en nuestros días: escritos selectos de Raya Dunayevskaya (México: Juan Pablos Editor, 2019), com tradução de Héctor J. G. F. – cuja edição digital está disponível no portal Comunizar (http://comunizar.com.ar). E para o livro Rosa Luxemburgo, la liberación femenina y la filosofía marxista de la revolución (Cidade do México: Fondo de Cultura, 1985), em que ela faz um debate respeitoso e honesto com Rosa, apontando o esforço militante e intelectual da marxista polonesa, mas pontuando suas discordâncias; dentre elas, critica-a por, apesar das importantes análises sobre o imperialismo, não ter notado o potencial revolucionário das populações colonizadas não-brancas das nações da periferia do capitalismo.

Vale ainda menção a uma importante obra acerca do pensamento de Raya, publicada em espanhol: Raya Dunayevskaya, filósofa del humanismo-marxista – escrita pelo marxista Eugene Gogol (Cidade do México: Casa Juan Pablos, 2005).

4 – Bibliografia de referência

ANDERSON, Kevin B. Raya Dunayevskaya’s Intersectional Marxism: Race, Class, Gender, and the Dialectics of Liberation. Londres: Palgrave Macmillan, 2020.

FLETCHER, Alex (dir.). Raya Dunayevskaya: biography of an Idea (2012) [Documentário, 80 min.].

FRIEDMAN, Samuel. R. “Philosophy and revolution: from Hegel to Sartre and from Marx to Mao”. Contemporary Sociology, Washington, 34(1), 2005. Disp: https://journals.sagepub.com.

GILMAN-OPALSKY, Richard. “Amor, desconcerto anticapitalista”. Outras Palavras, 2022. Disp.: https://outraspalavras.net.

GOGOL, Eugene. Raya Dunayevskaya: filósofa del humanismo marxista. México: Casa Juan Pablos, 2006.

______. “El pensamiento de Raya Dunayevskaya: su relevancia para la América Latina del siglo XXI”. Utopía y Praxis Latinoamericana: Revista Internacional de Filosofía Iberoamericana y Teoría Social (Universidad del Zulia), ano 19, n. 65, Maracaibo (Venezuela), 2014. Disp.: https://repositorio.flacsoandes.edu.ec.

______. “Raya Dunayevskaya y la filosofía del humanismo marxista: su significado hoy”. News and Letters Committees, dez. 2017. Disp.: https://newsandletters.org.

HUDIS, Peter. “El marxismo humanista de Raya Dunayevskaya”. Jacobin, 21 jun. 2021. Disp.: https://jacobinlat.com.

______; ANDERSON, Kevin B. The power of negativity: selected writings on the dialectic in Hegel and Marx. Lanham: Lexington Books, 2002. Disp: https://thecharnelhouse.org.

MONFERRAND, Frédéric. “Un marxismo de la liberación”. Marxismo Crítico, 2017. Disp.: https://marxismocritico.com.

MONZÓ, Lilia. “A dialética em Marxism and freedom para hoje: a unidade da teoria e da prática e o atual movimento das lutas concretas”. The International Marxist-Humanist, mar. 2019 (trad. Rhaysa Ruas). Disp.: https://imhojournal.org.

NEWS & LETTERS; THE RAYA DUNAYEVSKAYA MEMORIAL FUND. “The Raya Dunayevskaya collection” [Introdução]. Em: The Raya Dunayevskaya Collection, 1969/1970/1981. Disp.: https://rayadunayevskaya.org; e https://reuther.wayne.edu.

Notas

* Solange Struwka é coordenadora do Núcleo Práxis-USP e editora do Dicionário Marxismo na América; professora de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia; doutora em Psicologia Social (USP), bacharel em Psicologia (USP), e pesquisadora do Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação. Autora de, entre outras obras: Saúde mental em tempos de pandemia: os imperativos da situação-limite e as tarefas da psicologia (LavraPalavra, 2022).

* Giovanna Imbernon é tradutora; cientista social (Unicamp), mestra em História do Pensamento Político (Unicamp) e doutoranda em Estudos Culturais (Univ. Coimbra). Autora de, entre outras obras: José de Alencar e a Formação do Pensamento Político Brasileiro (Unicamp, 2015)

* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes, Felipe Santos Deveza e Pedro Rocha Curado, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário Marxismo na América, obra coletiva coordenada por essa organização; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: [email protected].

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