Editor, tradutor, bibliotecário e ensaísta, foi dirigente de organizações trotskistas estadunidenses e destacado estudioso da obra de Marx – tendo desenvolvido o conceito de “socialismo a partir de baixo”
Por Felipe Cotrim *
DRAPER, Hal; Harold Dubinsky (estadunidense; Nova Iorque, 1914 – Berkeley/ Estados Unidos, 1990).
1 – Vida e práxis política
Filho de imigrantes de etnia ucraniana, oriundos do Império Russo, Harold Dubinsky, mais tarde conhecido como Hal Draper, nasceu e cresceu no distrito nova-iorquino do Brooklyn, tendo cursado o ensino médio na escola masculina Boys High School. Seu pai, Samuel Dubinsky, era gerente em uma fábrica de camisas. Sua mãe, Annie Kornblatt Dubinsky, mantinha uma loja de doces, meio pelo qual sustentou a família após a morte do marido, quando Hal tinha apenas dez anos.
Hal Draper foi o irmão mais novo de Theodore Draper (1912-2006), que se tornaria historiador do movimento comunista estadunidense; seus outros irmãos foram Dorothy Rabkin e Robert Draper. A adoção do sobrenome “Draper”, sonoramente anglo-saxônico, foi ideia de sua mãe, visando proteger os filhos do preconceito, uma vez que “Dubinsky” denotava uma origem europeia oriental.
Em 1934, graduou-se no Brooklyn College. Envolvido em política desde a adolescência, neste mesmo ano se tornou membro da Young People’s Socialist League [Liga Socialista da Juventude Popular] (YPSL) – a juventude do Socialist Party of America [Partido Socialista da América] (SPA) –, passando a militar contra o fascismo, as guerras e o desemprego, e se aproximando do trotskismo.
Ainda jovem, Hal Draper se casou com Anne Kracik Draper (1917-1973), marxista e sindicalista envolvida nas lutas pela emancipação das mulheres. Juntos, militaram durante décadas em organizações trotskistas.
Vivendo em Nova Iorque, durante a década de 1930 ele também atuou como editor-assistente do jornal trotskista Socialist Appeal [Chamado Socialista], lecionou em escolas de ensino médio da cidade e, pela YPSL, participou das insurreições estudantis – ocorridas no contexto da Grande Depressão (1929-1939).
Em 1937, sendo uma das principais lideranças da YPSL, Draper criticou a “stalinização” da Internacional Comunista – a III Internacional (1919-1943) – e, após a entrada de militantes trotskistas no SPA, votou a favor da formação da IV Internacional (1938). Com esta decisão, apoiada pela maioria do partido, os demais membros ou saíram ou foram expulsos.
Em 1938, Hal Draper rompeu com o SPA, ingressando então no Socialist Workers Party [Partido Socialista dos Trabalhadores] (SWP) – partido do qual foi secretário-nacional de Juventude, membro da primeira Executiva Nacional e secretário do National Education Department [Departamento Nacional de Educação].
Pouco mais tarde, Draper foi contra a ruptura no SWP (1940), cisão motivada pela chamada “questão russa”, ou “soviética” (a polêmica em torno do apoio incondicional ou oposição crítica à União Soviética), e pela concepção burocrática e hierárquica de partido defendida por James Cannon (então líder do SWP). Neste mesmo ano, Hal Draper saiu do SWP e ajudou a fundar o Worker’s Party [Partido dos Trabalhadores] (WP) – que seria dirigido por Max Shachtman. Este partido – que não apoiava a União Soviética, por considerá-la uma sociedade “burocrático-coletivista” – defendia um modelo socialista que se pretendia mais “democrático”, o que foi sintetizado no lema: “Nem Washington, nem Moscou, mas por um terceiro campo do socialismo independente!” – origem da corrente Third Camp Socialism [Terceiro Campo do Socialismo]. Em oposição à concepção de partido de James Cannon, o WP tentou desenvolver uma cultura interna menos hierárquica, com espaço a debates internos e sem repressão às dissidências.
Em 1942, Hal Draper, depois de organizar seções políticas do WP no Leste de Massachusetts e na Filadélfia (entre 1941 e 1942), mudou-se para Los Angeles, onde também organizaria seções do partido. Aí, juntamente com sua esposa, trabalhou no distrito de San Pedro, como operário em estaleiros navais, e militou em campanhas antifascistas e antirracistas. Depois da II Guerra (1939-1945), ele retornou para Nova Iorque, onde passou a editar o The New International [A Nova Internacional], revista marxista primeiramente dirigida pelo SWP (entre 1934 e 1940) e, depois, pelo WP (entre 1940 e 1958).
Em 1949, enfraquecido, o WP optou por deixar seu estatuto de “partido”, sendo rebatizado de Independent Socialist League [Liga Socialista Independente] (ISL). Durante os anos 1950, Draper assumiu também o cargo de editor do jornal da organização – o Labor Action [Ação Trabalhista] – até o racha de 1958, quando uma de suas alas, da qual ele era oposição, migrou para o SPA, desarticulando a ISL.
No ano de 1958, Hal Draper teve problemas de saúde, os quais exigiam que ele vivesse em um local com clima mais ameno. Depois de viajar pela Europa com sua compenheira Anne, mudou-se para Oakland, Califórnia. Em 1960, o casal se fixou na vizinha Berkeley. Nesta cidade, Hal regressou à academia, obtendo seu mestrado em Biblioteconomia, pela University of California (UCLA), instituição onde também trabalhou como bibliotecário.
Em 1961, ele fundou e foi membro do Conselho Editorial do New Politics [Nova Política], periódico sediado em Nova Iorque e ligado ao movimento do Terceiro Campo do Socialismo. Ainda este ano, escreveu uma obra de ficção científica: “Ms Fnd in a lbry: or, the day civilization collapsed” [“Sra. Fnd em uma bbltc: ou o dia em que a civilização colapsou”] (The Magazine of Fantasy and Science Fiction, 1961) – conto no qual satiriza a “era da informação”. Por este tempo, junto com o socialista Joel Geier, organizou também os Independent Socialist Clubs [Clubes Socialistas Independentes] (ISC), dedicados à preservação da tradição revolucionária terceiro-campista; estes clubes serviriam de base política para muitos militantes socialistas estadunidenses nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Durante os anos 1960, Hal Draper foi um dos mentores do Free Speech Movement [Movimento pela Liberdade de Expressão] (1964-1965), de Berkeley; do California Peace and Freedom Party [Partido Californiano da Paz e Liberdade] (PFP-California); do movimento de oposição à Guerra do Vietnã (1955-1975); e de outras organizações de esquerda precursoras da New Left [Nova Esquerda] (movimento político que se dedicou a novas reivindicações por direitos civis e políticos), nos Estados Unidos.
Essa sua colaboração com o Free Speech Movement de Berkeley merece atenção especial em sua biografia política, pois a experiência histórica do movimento, do qual ele foi cronista, serviu de matéria-prima para suas reflexões e pesquisas – realizadas de modo independente – sobre a prática e a teoria política marxista, a que ele se dedicou dos anos 1960 em diante. O Free Speech Movement foi um movimento estudantil, com atuação especialmente no meio universitário, no contexto das lutas pelos direitos civis nos EUA (década de 1960). No caso específico do campus de Berkeley da UCLA, os estudantes questionavam o modelo educacional burocrático, hierárquico e industrial, e o conteúdo das disciplinas, que eles consideravam como um “terreno baldio” (“wasteland”) moral e intelectual. Também manifestaram oposição ao conservadorismo e ao elitismo do governo da Califórnia, bem como à política externa estadunidense. Para restabelecer a ordem política no campus, a reitoria da Universidade da Califórnia impôs uma legislação draconiana contra o ativismo estudantil. Então, os estudantes, liderados por Mario Savio e Jack Weinberg, responderam àquela legislação por meio de uma rebelião, iniciada no outono de 1964, convocando protestos, ocupações e uma greve – o que pressionaria fortemente a administração do campus e as autoridades da universidade –, além de desafiarem o governo estadual (que enviaria 500 policiais para reprimir o movimento, prendendo 782 manifestantes). A rebelião inspirou estudantes por todo o país, tornando-se modelo para a política estudantil nacional dos anos 1960 e 1970. Draper apoiou a insurreição estudantil – episódio que narrou em Berkeley: the new student revolt [Berkeley: a nova rebelião estudantil] (1965), obra escrita no calor do momento –, sendo então reconhecido como “amigo dos estudantes” e “deseducador” das massas por instigar os jovens ao ativismo político e contra o status quo (o estado atual das coisas). Sobre a mesma temática, em 1968, em coautoria com sua esposa Anne, Hal publicou o livro The dirt on California: agribusiness and the university [Sujeira na Califórnia: o agronegócio e a universidade].
Em 1969, Hal Draper editou e publicou os verbetes de Karl Marx e Friedrich Engels da New American Cyclopædia [Nova Enciclopédia Americana]. Neste mesmo ano, os clubes socialistas (ISC) foram rebatizados de International Socialists [Socialistas Internacionais] – e ele se encarregou de criar e dirigir a gráfica da organização.
Contudo, no âmbito dos debates sobre política sindical e organização partidária, logo surgiram novas dissidências. Assim, acompanhado por alguns militantes de Berkeley, Hal Draper dois anos depois rompeu com os International Socialists, acusando a organização de ter se tornado uma “seita”. A partir de então, tornou-se um militante socialista independente, sem vínculo orgânico com nenhuma organização, tendência ou corrente partidária. Ainda em 1971, ele traduziu e publicou os textos de Marx e Engels acerca da Comuna de Paris: Writings on the Paris Commune [Escritos sobre a Comuna de Paris] (1971).
Pouco tempo depois, em 1973, sua companheira Anne Draper faleceu precocemente; ela, assim como seu esposo, durante a década de 1940 trabalhara em estaleiros navais (como soldadora), sofrendo forte exposição ao amianto.
Nessa década de 1970, Hal Draper, após ter se aposentado na UCLA (em que, além de bibliotecário, foi também bibliógrafo), passou a se dedicar à pesquisa e publicação de ensaios sobre o marxismo, tarefa teórica que considerava primordial para a reorientação política dos socialistas nos Estados Unidos – pois julgava suas organizações confusas e sectárias, tanto com relação à teoria quanto à prática política e partidária. Foi nessa época que ele produziu sua maior obra, ganhando destaque como estudioso do pensamento de Marx: Karl Marx’s theory of revolution [A teoria da revolução de Karl Marx], livro publicado em quatro volumes (entre 1977 e 1990), além de um volume póstumo, produtos de sua pesquisa histórica arqueológica na coleção Marx-Engels Werke [Obras de Marx e Engels] (MEW), bem como na nova Marx-Engels Gesamtausgabe [Edição completa de Marx e Engels] (MEGA); neste trabalho desenvolveria sua concepção de “socialismo a partir de baixo” (“socialism from below”). Por este tempo, destacou-se ainda como ensaísta, tradutor, arquivista e compilador de notícias (clippings), contribuindo para a preservação do legado documental do WP-ISL.
Em 1981, Draper fundou em Berkeley o Centre for Socialist History [Centro de História Socialista], instituição que promoveria pesquisas e publicações sobre a história do socialismo – projeto a que se dedicou até falecer.
No ano seguinte, publicou sua prestigiada tradução The complete poems of Heinrich Heine: a modern english translation [Poemas completos de Heinrich Heine: uma tradução em inglês moderno]; e, em 1985, editou a obra The Marx-Engels cyclopedia [A enciclopédia Marx-Engels]. Durante esta década, manteve-se ativo na militância política, tendo convocado brigadas internacionais combater os paramilitares dos Contras, na Nicarágua – milícias reacionárias apoiadas pelos EUA para se contrapor à Revolução Sandinista (de 1979).
Hal Draper morreu em 1990, de pneumonia, em sua casa, em Berkeley, aos 75 anos.
2 – Contribuições ao marxismo
Hal Draper foi um militante socialista, ensaísta, editor e tradutor estadunidense que pesquisou e escreveu sobre o marxismo e o socialismo durante cinco décadas, bem como sobre a política, a cultura e a sociedade estadunidense do século XX.
A formação e difusão da concepção de “socialismo a partir de baixo” foi uma das principais contribuições políticas e teóricas de Draper ao marxismo do século XX, atravessando, mesmo que de modo indireto, quase toda sua obra, sobretudo dos anos 1960 em diante. Esse conceito é produto tanto da experiência de Draper como militante político em partidos de esquerda dos Estados Unidos quanto de sua exegese nos clássicos do pensamento socialista, especialmente Karl Marx, Friedrich Engels, William Morris, Vladimir I. Lênin, entre outros. Sua formulação da concepção de socialismo a partir de baixo visava atender e intervir nos debates sobre a questão da organização política e partidária na esquerda dentro do contexto político estadunidense dos anos 1960 em diante.
A ideia de socialismo a partir de baixo parte de uma crítica sua aos modelos de partido social-democrata e stalinista, por ele considerados elitistas, sectários, dogmáticos, burocráticos e tecnocráticos, incompatíveis com o princípio da autoemancipação das classes trabalhadoras – que deveria, por sua vez, ser produto da “revolução socialista” e da “revolução democrática”, por meio das lutas de classes. Draper batizou sua contrapartida de “socialismo a partir de cima” (“socialism from above”); neste grupo, incluiu os socialistas utópicos, a social-democracia, o socialismo fabiano (movimento reformista não-marxista), o stalinismo e o anarquismo.
Em The two souls of socialism [As duas almas do socialismo] (1966) – de modo similar à terceira parte do Manifesto comunista (1848), de Marx e Engels –, Draper atualiza a cartografia do movimento socialista pós-1848, organizando-o entre socialismo a partir de cima versus socialismo a partir de baixo. Segundo ele, enquanto aquele tipo de socialismo tem um caráter elitista, sectário, filantrópico, reformista, autocrático e tecnocrático, a corrente socialismo a partir de baixo, que teria sido aquela fundada por Marx e Engels, foi a primeira do movimento socialista a combinar o socialismo com a democracia e a estabelecer as classes trabalhadoras como agentes de sua emancipação econômica e política diante do capitalismo e das classes burguesas. Para Draper, a função das organizações socialistas é educar e mobilizar as classes trabalhadoras para sua autoemancipação, isto é, ser um catalisador das lutas de classes – e jamais um guia messiânico dos proletários.
Em ensaios posteriores, como Toward a new beginning: on another road – the alternative to the micro-sect [Rumo a um novo começo: em outra estrada – a alternativa à microsseita] (1971) e Anatomy of the micro-sect [Anatomia da microsseita] (1973), bem como em textos que visavam desmistificar a concepção de partido leninista – como “The myth of Lenin’s
‘concept of the party’: or what they did to What is to be done?” [“O mito da ‘concepção de partido’ de Lênin: ou o que fizeram de Que fazer?”] (Historical Materialism, 1999) –, Draper desdobra a concepção de socialismo a partir de baixo e as táticas nas quais as organizações socialistas seriam capazes de impulsionar e colocar em movimento o projeto de autoemancipação das classes trabalhadoras.
Retomando a experiência política de Marx, Engels e Lênin, Draper propõe que a organização adequada para realizar o socialismo a partir de baixo é o centro político (“political center”), materializado em algum projeto editorial (jornal ou revista, como a Nova Gazeta Renana, de Marx e Engels, ou o Iskra, de Lênin). Por meio de um órgão de imprensa, o centro político, formado por seu “Conselho Editorial”, disseminaria ideias, literatura e buscaria influenciar as organizações políticas já existentes das classes trabalhadoras, bem como as demais organizações políticas de esquerda, no sentido da revolução socialista e democrática. Draper defende a tese de que era este o modelo organizacional de Marx, Engels e Lênin: uma organização socialista, não sectária, organizada a partir de um periódico, o qual constrói, organiza e dá coesão teórica ao centro político – que, por sua vez, atua dentro do movimento operário existente. Logo, o centro político não “cria” e não “comanda” o movimento operário, mas o auxilia a ganhar forma socialista e democrática, isto é, revolucionária. De acordo com Draper, Marx e Engels não teriam propriamente construído um partido ou organização marxista; sua participação no movimento operário se dava por meio do centro político, fosse na Liga dos Comunistas (1847-1852), na Nova Gazeta Renana (1848-1849) ou na Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876). O princípio que dirige essa concepção e tática política é o da autoemancipação das classes trabalhadoras, na qual o socialismo é possível por meio da autoatividade delas nas lutas de classes. Os socialistas deveriam atuar dentro das lutas de classes na sociedade e, por meio da educação e da propaganda política, direcionar as classes trabalhadoras rumo à democracia e ao socialismo. Esse movimento, ao entrar em contradição com as classes burguesas e suas instituições, ameaçaria os fundamentos da sociedade capitalista, abrindo o potencial para insurreições e revoluções.
Vale ainda destacar que Draper é reconhecido como um grande estudioso do pensamento marxiano, sobretudo por sua mencionada obra Karl Marx’s theory of revolution. Contudo, mesmo sendo um projeto de envergadura, em que Draper demonstra sua erudição e conhecimento acerca dos textos de Marx e Engels, o livro foi questionado por alguns críticos, com a alegação de que o autor teria desconsiderado diferenças entre o Marx jovem (de textos como os Manuscritos de Paris, de 1844) e o maduro (de obras como O capital, de 1867) – tema que aliás continua a ser motivo de polêmica entre correntes marxistas. Outro ponto levantado foi o escasso debate de Draper com pensadores marxistas contemporâneos, como Lukács e Poulantzas, que estudaram muitos dos mesmos temas que ele examinou na obra de Marx.
Dentre os temas que desenvolveu, entende-se que as contribuições mais contundentes de Hal Draper ao materialismo histórico são: sua concepção de socialismo a partir de baixo; suas ideias acerca das questões de organização e função dos partidos socialistas; e seus trabalhos de edição e de tradução ao inglês das obras de Marx e Engels – as quais promoveram a difusão do marxismo nos Estados Unidos.
3 – Comentário sobre a obra
Até os anos 1950, a maior parte dos textos de Draper consistiram na publicação de artigos e panfletos nos quais analisou a conjuntura política estadunidense e internacional, debateu sobre os dilemas dos partidos de esquerda estadunidense e resenhou livros e filmes. Alguns desses textos foram assinados com pseudônimos, como “Paul Temple” e “Philip Coben”.
Em 1965, publicou The student movement of the thirties: a political history [O movimento estudantil dos anos 1930: uma história política] (S/l: s/n, 1965), texto em que escreve uma história do movimento estudantil dos anos 1930, do qual fez parte.
Naquele mesmo ano, publicou o citado Berkeley: the new student revolt (Nova Iorque: Grove, 1965); escrito em meio à rebelião estudantil de 1964 e tomando partido da causa dos estudantes, é o principal livro político e historiográfico a respeito do evento que teve lugar na Universidade da Califórnia.
Com a assistência do Center for Socialist History, editou o The Marx-Engels cyclopedia (Nova Iorque: Schocken, 1985), obra em três volumes. O primeiro tomo apresenta uma cronologia da vida pública e privada de Marx e de Engels. O segundo é um trabalho meticuloso e obsessivo do marxista estadunidense: um completo e detalhado compêndio bibliográfico de tudo que foi escrito por Marx e Engels (títulos, datas, circunstâncias, local de publicação, traduções e outras minúcias) – um grande serviço para os estudos marxianos. Por fim, o terceiro é o glossário e o índex dos volumes I e II.
Como tradutor, publicou o The complete poems of Heinrich Heine: a modern english translation (Oxford: Oxford University Press, 1982), reconhecido como um grande feito editorial – uma das melhores versões em inglês da poesia de Heine, fornecendo a tradução mais acessível e precisa de seus versos ao público de língua inglesa. Fruto de um trabalho iniciado em 1948 e concluído em meados dos anos 1970, a publicação deu prestígio a Draper para além dos círculos socialistas.
Sobre a América Latina, Draper comentou as considerações de Marx a respeito de Simón Bolívar em “Karl Marx and Simón Bolívar: a note on authoritarian leadership in a national-liberation movement” (New Politics, Nova Iorque, v. 7, n. 1, 1968), traduzido ao espanhol como “Carlos Marx y Simón Bolívar: apunte sobre el liderazgo autoritario en un movimiento de liberación nacional” (Desarrollo Económico, Buenos Aires, v. 8, n. 30/31, 1968). No texto, ele pondera que a crítica de Marx a Bolívar – a quem o pensador alemão considera um líder bonapartista (isto é, de característica autoritária, carismática) que se contrapunha aos interesses da revolução – causou e continuava causando controvérsias entre socialistas quanto ao papel do chamado “Libertador” latino-americano. O estadunidense argumenta que tal perspectiva negativa seria exagerada, o que se deveu, segundo ele, à pouca informação que Marx tinha à época sobre o líder sul-americano. Contrário a esta opinião, Draper ressalta o papel “progressista” de Bolívar na história das lutas independentistas, como líder de um “grande movimento de libertação nacional”.
Sua principal obra é Karl Marx’s theory of revolution (Nova Iorque: Monthly Review Press, 1977-1996, v. 1-4; Alameda-EUA: Center for Socialist History, 2005, v. 5), reconhecida tanto pela erudição e rigor científico quanto por suas qualidades de escrita e estilo. Trata-se de um esforço de Draper por escavar toda a obra de Marx e Engels em busca de uma sistematização de suas concepções e práticas políticas, visando reorientar a política das organizações socialistas de seu tempo, que ele identificava como seitas, ou microsseitas, sem vínculo político real com as classes trabalhadoras e com as lutas de classes na sociedade, isto é, ainda que involuntariamente, elas estariam dentro da concepção de socialista a partir de cima. Em seus quatro volumes publicados em vida (o quinto volume foi publicado postumamente), Draper reuniu e organizou todo o material disponível de Marx e Engels sobre política disponíveis nos 43 volumes da Marx-Engels Werke (MEW, 1956-1990), examinando o entendimento deles sobre bonapartismo, birmarkismo, czarismo, classes sociais, revolução, Estado burguês e Estado proletário, burocracia estatal, democracia e ditadura, revolução social e revolução permanente, além de revisar a história das organizações socialistas do século XIX.
Embora independente de Karl Marx’s theory of revolution, o livro The ‘dictatorship of the proletariat’ from Marx to Lenin [A ‘ditadura do proletariado’ de Marx a Lênin] (Nova Iorque: Monthly Review Press, 1987) segue o mesmo projeto de investigação profunda e reabilitação da concepção e prática política de Marx e Engels. Considerado pelo próprio autor como uma sequência do volume 3 de Karl Marx’s theory of revolution, em The ‘dictatorship of the proletariat’ from Marx to Lenin, Draper examina o conceito de “ditadura do proletariado” desde sua formulação (por Marx e Engels), passando pelos debates da Internacional Socialista (1889-1916), pela questão entre Kautsky (A ditadura do proletariado, 1918) e Lênin (A revolução proletária e o renegado Kautsky, 1918) sobre os rumos da Revolução Russa de Outubro de 1917, e chegando até o stalinismo, quando Draper considera que se dá sua transformação em uma “burocracia coletivista”.
Deve-se destacar também os escritos The two souls of socialism (Berkeley: Independent Socialist Committee, 1966), Toward a new beginning: on another road – the alternative to the micro-sect ([S. l.: s. n.], 1971), Anatomy of the micro-sect (S/l: s/n, 1973) e “The myth of Lenin’s ‘concept of the party’: or what they did to what is to be done?” (Historical Materialism, Nova Iorque, v. 4, n. 1, 1999), textos nos quais se acompanha a formação e evolução do conceito de socialismo a partir de baixo, um de seus principais aportes ao marxismo – em que trata da organização política e partidária.
Postumamente, Ernest Haberkern editou as obras: Socialism from below [Socialismo a partir de baixo] (Atlantic Highlands: Humanities, 1992), seleção de artigos e manuscritos; War and revolution: Lenin and the myth of revolutionary defeatism [Guerra e revolução: Lênin e o mito do fatalismo revolucionário] (Atlantic Highlands: Humanities, 1996), reedição do artigo “The myth of Lenin’s ‘revolutionary defeatism’” [“O mito do ‘fatalismo revolucionário’ de Lênin”] (New International, Nova Iorque, v. 19, n. 5/6, 1953; v. 20, n. 1, 1954), e o citado quinto volume de Karl Marx’s theory of revolution.
Alguns escritos de Draper podem ser encontrados em portais como o Socialist Worker (https://socialistworker.org) e o Marxists (www.marxists.org).
Embora seja considerado um dos clássicos do marxismo anglo-saxônico, a obra de Draper foi pouco traduzida; em português, há alguns textos, como: “As duas almas do socialismo” (Outubro, São Paulo, n. 32, 2019 [1966]); e “Rumo a um novo começo: em outra estrada – a alternativa à microsseita” (Marxists, 2018 [1971]) — ambos disponíveis na rede em formato digital.
4 – Bibliografia de referência
FARBER, Samuel. The Berkeley Free Speech Movement, 56 Years Later. Jacobin, Nova Iorque, 3 set. 2020.
FLINT, Peter. “Hal Draper, 75, socialist writer who recounted Berkeley Protest” [Obituário]. The New York Times, Nova Iorque, 31 jan. 1990.
GEIER, Joel. “Radicals and the Berkeley Free Spreech Movement”. Jacobin, Nova Iorque, 21 dez. 2020.
HABERKERN, Ernest. “Introduction to Hal Draper”. Marxists Internet Archive, 1998. Disp: www.marxists.org/archive/draper.
HATFIELD, Henry. Studies in Romanticism, Boston, v. 22, n. 4, 1983. Resenha de: Heinrich Heine. The complete poems: a modern english version [tradução de Hal Draper]. Boston: Suhrkamp, 1982.
JOHNSON, Alan. “Democratic marxism: the legacy of Hal Draper”. Em: COWLING, Mark; REYNOLDS, Paul (orgs.). Marxism, the millennium and beyond. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2000.
______. “Introduction: Hal Draper – a biographical sketch”. Historical Materialism, Londres, v. 4, n. 1, 1999.
KUHN, Rick. “Continuing the ‘excavation’ of Marx’s work”. Australian Journal of Political Science, Londres, v. 41, n. 3, 2006.
LIPOW, Arthur. “Hal Draper – Karl Marx’s theory of revolution (v. 1): state and bureaucracy”. Contemporary Sociology, Washington, v. 7, n. 1, 1978.
PHELPS, Christopher. “Draper, Hal (1914-1990)”. Em: BUHLE, Mari Jo; BUHLE, Paul; GEORGAKAS, Dan (orgs.). Encyclopedia of the American Left. Nova Iorque: Oxford University Press, 1998.
Notas
* Felipe Cotrim é historiador e assistente editorial; bacharel e licenciado em História (Pontifícia Universidade Católica-SP) e mestre em História Econômica (Universidade de São
Paulo); membro do Conselho Editorial da Revista Angelus Novus (USP). Autor de, entre outras obras: Jovem Engels: evolução filosófica e crítica da economia política (Viriato, 2022).
* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes, Ândrea Francine Batista e Paulo Alves Junior, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: [email protected].