Professor, filósofo, poeta e intelectual marxista, notabilizou-se pela defesa da Reforma Agrária e da cultura indígena como fundamentos da construção nacional peruana
Por Sara Beatriz Guardia *
[Tradução: Yuri Martins-Fontes e Pedro Rocha Curado]
GUARDIA MAYORGA, César Augusto (peruano; Lampa/Peru, 1906 – Lima, 1983)
1 – Vida e práxis política
César Augusto Guardia Mayorga nasceu no estado de Ayacucho, no Sul do Peru. Fez a escola fundamental no distrito de Lampa e o ensino médio no Colegio Nacional Nuestra Señora de Guadalupe, em Lima, e no Colegio Nacional Independencia, em Arequipa, onde editou a revista estudantil Burbujas.
Em 1929, entrou na Faculdade de Letras da Universidad Nacional de San Agustín, em Arequipa; na mesma instituição, cinco anos depois, obteve seu doutorado em História, Filosofia e Letras com a tese Apuntes de la sierra (1934) – descrita por um de seus examinadores como “uma importante contribuição à sociografia nacional”. No ano seguinte, Mayorga se casou com a professora Manuela Aguirre Dongo, com quem teria seis filhos. E em 1937, deu início às atividades de docência na mesma universidade em que se formou, passando a ministrar o curso de História da Filosofia Antiga e Metafísica. Neste mesmo ano, obteve um registro para atuar como advogado e publicou seu primeiro livro Historia contemporánea.
Em 1943, na qualidade de presidente da filial de Arequipa da Associación Nacional de Escritores, Artistas e Intelectuales (ANEA), foi convidado a dar palestras sobre temas filosóficos no Chile, para onde viajaria, proferindo seis conferências e estabelecendo aí fecundas amizades. Dois anos depois, foi nomeado vice-diretor da Facultad de Letras da Universidad de San Agustín e publicou sua conhecida obra Reconstruyendo el aprismo (1945).
Com o objetivo de se dedicar à docência universitária, em 1946 interrompeu sua atividade na advocacia. Neste ano publicou Psicología infantil y del adolescente e fundou a Facultad de Educación na mesma universidade em que dava aulas, além de ter assumido o cargo de diretor do Colegio Universitario e de diretor de conferências do Colegio de Abogados. No ano seguinte veio à luz seu fascículo Filosofía y Ciencia (1947) e, em 1949, preocupado com o problema de se desenvolver a educação e a filosofia no Peru, Guardia publicou o livro Terminología filosófica e o artigo “Reforma Universitaria” – na Revista de la Universidad de San Agustín, periódico ao qual, como diretor, ele deu nova orientação editorial.
Por este tempo, o general Manuel A. Odría (1948-1956) levara a cabo um golpe de Estado contra o presidente José Luis Bustamante y Rivero (outubro de 1948), inaugurando um regime militar que passou a reprimir seus opositores. Assim, a fim de se legitimar no poder, em 1950 Odría convocou eleições, nas quais que se apresentou como o único candidato. Como resposta, protestos tomaram forma e, em junho deste ano, estudantes do Colegio de la Independencia, de Arequipa, entraram em greve contra a farsa eleitoral organizada pela ditadura militar. Entrincheirados em suas posições, os jovens rechaçaram a entrada da polícia que, por sua vez, não hesitou em usar armas de fogo; sangue foi derramado pelos corredores enquanto os estudantes corriam para a Plaza de Armas sem outra defesa que não fosse a força de sua indignação. Uma vez ali, decidiram subir a torre da catedral para tocar os sinos, numa tentativa desesperada de reunir apoio. A população respondeu: pessoas tomaram as ruas, formaram barricadas, ocuparam estabelecimentos e exigiram a demissão do coronel Daniel Meza Cuadra, prefeito de Arequipa. O protesto durou vários dias. Em reunião aberta, os insurgentes proclamaram uma Junta Provisória, cuja primeira ação foi lançar um manifesto apontando o início da “revolução pela liberdade do povo peruano e a reivindicação dos direitos de cidadania”. Uma greve geral foi decretada em seguida, contando com a adesão de instituições como a Universidad Nacional de San Marcos, o Colegio de Guadalupe (Lima) e as universidades de Cuzco, Puno e Trujillo. A repressão do governo recrudesceu, até que a Universidad de San Agustín – ponto nevrálgico da resistência – caiu em poder do exército. A rebelião contra a ditadura havia sido derrubada. Cerca de um mês depois, o governo informou ao reitor Alberto Fuentes Llaguno que a universidade seria fechada se o clima de agitação política continuasse.
Algum tempo depois, no início de 1952, César Guardia Mayorga e mais sete professores (Teodoro Núñez Ureta, Humberto Núñez Borja, Eduardo Rodríguez Olcay, Ernesto Rodríguez Olcay, Alfonso Montesinos, Javier Mayorga Goyzueta e Carlos Nicholson) foram expulsos da Universidad Nacional de San Agustín sob a acusação de fomentar a rebelião estudantil. Obrigado a deixar seu país, Guardia foi convidado pelo sociólogo comunista Arturo Urquidi, reitor da Universidad Mayor de San Simón de Cochabamba, para dar aulas nesta instituição boliviana; mudou-se então para o país vizinho, onde foi nomeado professor das disciplinas de Introdução à Filosofia e de História da Filosofia. Durante os anos em que viveu com sua família na Bolívia, organizou e dirigiu o Seminário de Filosofia desta universidade, foi membro da Comisión de la Reforma Universitaria e colaborou com as revistas Jurídica e Cultura (a qual era dirigida pelo intelectual e jornalista Eduardo Ocampo Moscoso).
Neste período, o marxista peruano viveu um tempo conturbado da história boliviana – o primeiro governo do presidente Víctor Paz Estensoro (1952-1956) –, em que a Universidad de San Simón sofreu a intervenção de uma “comissão organizadora”, a qual impôs ao Conselho Universitário a demissão de Guardia, devido a sua filiação comunista, além de ter expulsado outros docentes bolivianos também socialistas. Diante da arbitrariedade, organizou-se uma greve geral de professores e estudantes, movimento que acabaria por conseguir que o Conselho Universitário revogasse a decisão. Guardia Mayorga foi então informado de que poderia voltar a lecionar suas disciplinas de Filosofia; porém, respondeu dizendo que só regressaria quando todos os demais professores que haviam sido dispensados fossem recontratados. Após três meses de greve e mobilizações estudantis, os professores sancionados voltaram às salas de aula.
Na Universidad de San Simón, Guardia Mayorga proferiu algumas de suas conferências mais emblemáticas, tais como: “Concepto de la Filosofía”, “Rumbos de la Filosofía y la Ciencia en los tiempos actuales” y “Existencialismo como síntoma”. Ademais, publicou seu importante livro Historia de la filosofía griega (1953) e o ensaio “Reflexología” (1954) – na revista Cuadernos de Cultura, desta universidade. Em 1954, recebeu o diploma do I Congreso Argentino de Psicologia como membro de honra. Em 1956, foi nomeado professor honorário da Faculdade de Direito, Ciências Sociais e Ciências Jurídicas da Universidad de San Simón.
Enquanto isso, no Peru, Manuel Prado Ugarteche venceu as eleições presidenciais, em 1956, declarando anistia aos exilados políticos. Neste mesmo ano, César Guardia Mayorga regressou a seu país. Contudo, a alegria do reencontro com sua terra natal logo se transformou em tristeza, já que, mediante decreto, o governo o proibiu de lecionar em universidades. O motivo da interdição foi que se tratava de um filósofo declaradamente marxista. Com a censura, se seguiriam quatro anos de uma vida bastante sacrificada para si e sua família; vivendo em Lima, Guardia trabalhou como professor na rede particular de ensino, além de ter prestado serviços jurídicos como advogado; em paralelo, buscou finalizar obras que estavam em andamento.
Logo de seu regresso, em 1956, Guardia Mayorga participou do Congresso Interamericano de Filosofia, realizado em Santiago do Chile, onde apresentou o trabalho intitulado ¿Es posible la existencia de una filosofía nacional o latinoamericana?, posteriormente publicado na Revista de la Universidad de San Agustín (Arequipa). No ano seguinte, orientou seus estudos para os temas da Reforma Universitária e da Reforma Agrária – postulando a necessidade de se transformar a posse da terra no país, como base para se pôr fim às desiguais relações no campo peruano, dominado por latifundiários.
No final de 1957, um grupo de intelectuais formou o Comité de Amigos de Argelia Independiente, em solidariedade à luta do povo argelino pela independência – após 130 anos de colonização francesa; o comitê foi formado por Ángel Castro Lavarello, Laura Caller, Ernesto More e César Guardia Mayorga, além de intelectuais e delegados representantes de trabalhadores. A destacada participação de Guardia seria reconhecida, meio século depois, na ocasião do 50º aniversário da Revolução de Independência argelina (2012), quando o marxista peruano foi condecorado postumamente pelo presidente argelino Abdelaziz Bouteflika, em agradecimento a sua solidariedade e amizade.
Em 1959, Guardia Mayorga publicou o Diccionario kechwa-castellano/ castellano-kechwa, obra que se tornaria uma referência na defesa da cultura indígena peruana, cujo idioma, o quéchua, desde a colonização era visto com desdém pelas classes dominantes. Ainda neste ano foi convidado para visitar a República Popular da China para a celebração do 10º aniversário da Revolução de 1949. Em 1960, após a viagem, publicou De Confucio a Mao Tse Tung e assumiu a cátedra de Psicologia e Filosofia da Universidad de Huamanga de Ayacucho – na qual, contudo, só pôde lecionar por um ano, sendo demitido sob a acusação de influenciar politicamente os estudantes (os quais por sua vez entrariam em greve contra a demissão abusiva). Este foi um tempo de intenso descontentamento popular e agitação social no país, em que ocorreram diversas ocupações de terras por camponeses exigindo reforma agrária.
No início de 1962, durante a campanha eleitoral, Guardia Mayorga participou da Convención Nacional del Frente de Liberación Nacional, realizada em Lima, com um documento intitulado El Frente de Liberación Nacional y la Reforma Agraria. Nele, assinala que o problema agrário é “o problema fundamental do Peru”, sem o qual não há nenhuma “transformação básica da estrutura socioeconômica” do país. Nessa linha, sustenta que a reforma agrária deve “constituir o reconhecimento do direito social à terra”, direito que “as classes despossuídas e as forças democráticas do país exigem”. No entanto, em julho deste mesmo ano, o Comando Conjunto das Forças Armadas levou a cabo um golpe militar, depondo o presidente Prado, dissolvendo o congresso e impedindo a realização de eleições.
Na noite de 5 de janeiro de 1963, Guardia Mayorga foi preso e conduzido para a Colonia Penal del Sepa, na foz do rio Sepa, estado de Ucayali (região amazônica peruana), juntamente com cerca de 1500 professores, líderes políticos, sindicalistas e universitários, procedentes de todo o Peru – acusados pelo “crime” de serem socialistas. Dois meses depois, por razões de saúde, Guardia foi transferido de helicóptero da penitenciária El Sepa para o quartel da Guarda Republicana, junto com seu companheiro Hugo Pesce. De lá, foram levados para o Hospital da Polícia. Após nove meses de detenção injusta, foram libertados. Em uma palestra proferida alguns anos depois, intitulada Trayectoria intelectual de César Guardia Mayorga (1967), Hugo Pesce observou sobre seu camarada de lutas e cárcere que há de se ter uma “convicção filosófica e científica” muito tenaz para que se possa seguir um “caminho sereno e incorruptível” como o que trilhou Guardia, mantendo-se “acima da confusa planície do erro autointeressado”.
Em 1964, com a saúde recuperada, Guardia Mayorga foi admitido em um concurso para assumir as cátedras de Filosofia e Psicologia da Universidad San Luis Gonzaga de Ica, onde lecionou por quatro anos. Em 1968, por sugestão dos alunos, ministrou ainda um curso sobre o materialismo histórico-dialético na Faculdade de Letras da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima. Por esta época, aposentou-se do ensino universitário, embora tenha se mantido firme na luta política.
Dedicando-se então à escrita ensaística e literária, em 1970, fez o prólogo do livro de José Carlos Mariátegui Peruanicemos al Perú; logo, escreveu livros sobre temas de Filosofia e de História, além de sua Gramática kechwa (1973). Em 1975, publicou Harawi e lançou En el camino. O último livro de Guardia, Vida y pasión de Waman Poma de Ayala, foi publicado em 1979.
Em outubro de 1983, aos 77 anos de idade, César Guardia Mayorga faleceu.
2 – Contribuições ao marxismo
Guardia Mayorga foi um destacado teórico marxista, mas sobretudo um educador, que se dedicou a oferecer a seu povo e contemporâneos cuidadosas interpretações da História da Filosofia – desde os gregos antigos, escolásticos e enciclopedistas, a pensamentos como os de Kant, Hegel e, especialmente, Marx e Engels –, havendo ensinando não apenas a seus alunos universitários, mas também a companheiros de cárcere e trabalhadores em diversas palestras em praça pública.
O principal eixo que guia a filosofia de Guardia é o marxismo, pensamento visto por ele como totalizante, isto é, uma teoria que envolve também a prática; que nascida do desenvolvimento do pensamento humano e da luta dos povos, busca compreender um determinado contexto histórico sob diversas perspectivas, e cuja finalidade é descobrir a “lei econômica que move a sociedade moderna” – “a sociedade capitalista”. Neste percurso, além de Marx e Engels, foi influenciado também por Lênin, Mao Tsé-Tung e J. C. Mariátegui.
Em sua tese Concepción filosófica de César Guardia Mayorga, Fortunato Jáuregui sustenta que em suas obras Historia contemporánea e Historia media y moderna Guardia rompeu com a “forma tradicional” de se abordar e analisar os fatos históricos, a qual geralmente não ia além de uma “historiografia descritiva, aparentemente neutra e objetiva”. Valendo-se de uma linguagem ágil e exemplificada, o marxista buscou dar prioridade à interpretação dos fatos, contextualizando datas e dados.
Este é o caso do prólogo (1970) que Guardia escreveu para o livro de J. C. Mariátegui, Peruanicemos al Perú, no qual assinala que a conquista espanhola constituiu “o primeiro ato da desperuanização do Peru”, posto que, com isto, as riquezas peruanas passaram para o poder dos conquistadores; deste modo, a produção deixou de desempenhar seu “papel principal de satisfazer as necessidades dos povos e dos seres humanos”, tornando-se “um meio de exploração”; estabeleceu-se então uma “nova organização econômica, social e política”, cuja forma de produção de valor estava sujeita aos “interesses e aspirações dos conquistadores”.
Em seu conhecido estudo intitulado La intelectualidad peruana del siglo XX ante la condición humana, o filósofo Andrés Ávila destaca em Guardia uma cultura ampla, que se vê refletida em seu interesse por compreender as “várias dimensões da atividade humana” – tais como a filosofia, a ciência, a política, a legislação e a história –, além de demonstrar em muitos de seus textos uma abordagem política e filosófica marxista fortemente vinculada a seu compromisso com os grupos sociais oprimidos. Com efeito, com tal compromisso, Guardia Mayorga sofreria perseguição política e problemas financeiros – sem, no entanto, ter renunciado a seu papel de professor e crítico dos problemas da sociedade contemporânea. Seu objetivo político era promover a construção efetiva de sua nação, desenvolvida tanto em termos econômicos e sociais como culturais – o que implicava conferir especial atenção ao problema da terra e do conhecimento da língua quéchua.
Esta perspectiva ampla é vista em La Reforma Agraria en el Perú (1957), no qual o marxista, demonstrando seu comprometimento crítico, estabelece um programa de trinta pontos para a transformação da condição de vida do camponês. Relacionando a condição sócio-histórica do trabalhador do campo ao legado do colonizador ocidental, oferece possibilidades interpretativas para a situação histórica dos camponeses peruanos. Sua argumentação se fundamenta na premissa de que “não é possível conseguir a libertação do índio enquanto preexista o sistema feudal ou semifeudal”, sendo necessário “pôr fim a todo um sistema de propriedade e de exploração agrícola, que não só é prejudicial ao indígena, mas a todo o país”.
A abordagem crítica elaborada por Guardia não se dá apenas através de novas interpretações históricas e políticas da realidade de seu país, mas também no campo cultural e linguístico – em um intento de construção da identidade nacional peruana. É o caso de seu Dicionario kechwa-castellano/ castellano-kechwa, no qual ele defende “o direito dos povos de se expressarem e desenvolverem sua cultura em sua própria língua”. Como observou o escritor Sebastián Salazar Bondy, tal obra se destacou sobretudo como um “instrumento prático”. Efetivamente, não se trata de um dicionário destinado somente a especialistas, filólogos ou linguistas, mas sim à população em geral, a pessoas cuja concepção da nação faz com que não se esqueçam da necessidade de que seja estabelecido o espaço de uma língua nativa – e não apenas como um marco da cultura nacional, mas como um idioma de uso oficial, tal qual a língua do colonizador, permitindo assim que se consolide uma real comunicação entre os cidadãos de língua espanhola e aqueles que se expressam na língua indígena.
Com efeito, Guardia Mayorga empenhou-se diretamente na revalorização da língua e cultura andina, argumentando que somente uma nova consciência cognitiva e avaliativa de uma perspectiva nacional, com desejo de renovação, tornaria possível a “peruanização” do Peru. Este conceito está presente também em outras de suas obras e cursos, caso do livro Gramática kechwa (1973) – um exemplo pioneiro de proposta para uma educação intercultural e bilingue, que visou a edificação de uma identidade nacional –, e também de sua disciplina “Materialismo Dialético”, proferida durante o ano de 1968, na Universidad de San Marcos.
Já no artigo La Reforma Universitaria (1949), Guardia Mayorga argumenta que é de grande importância “criar o espírito científico em nossas universidades”. Mas esta preparação estaria incompleta, diz ele, se não fosse fornecida uma “educação humanista”: “a ciência e a tecnologia, instrumentos do domínio do homem sobre a natureza, devem ter como objetivo o bem-estar e a humanização da sociedade e do próprio homem”.
Desde o início de sua atividade intelectual e acadêmica, defendeu com tenacidade sua visão do Peru, manifestando sua adesão ao socialismo em um período em que isso significava decerto perseguição política, exílio ou prisão. Mesmo no cárcere, onde – nas palavras do poeta Gustavo Valcárcel – “as virtudes mais escondidas florescem e se revelam os defeitos ocultos”, Guardia foi um prisioneiro paradigmático: “por seu estoicismo”, pelas virtudes que sobressaíram de seu duro cativeiro, fazendo desta experiência um ensinamento.
Com relação a esta atitude humanista que caracteriza o pensamento e trabalho de César Guardia Mayorga, o político comunista Jorge del Prado, seu contemporâneo, destacou duas características “vigorosas e indeléveis” de sua personalidade. A primeira é sua concepção filosófica do homem, seu entendimento acerca do desenvolvimento cultural e da luta libertadora humana. Tal concepção, extensiva a toda a humanidade, germina da experiência própria do autor, da análise que faz do ambiente em que cresceu, da interpretação dos costumes e sentimentos dos homens e mulheres peruanos e de suas raízes ancestrais. Vê-se expressões desta preocupação vital em suas obras sobre filosofia, literatura e poesia quéchua; coleções de poemas e dicionários que o qualificam como um dos estudiosos e pesquisadores mais autorizados. O segundo traço seria seu profundo senso de solidariedade, sua atitude fraternal e generosa que também se manifesta em seu relacionamento com seus companheiros de prisão durante os longos meses de confinamento em 1963.
Outra contribuição significativa de César Guardia foi sua coleção de poemas em quéchua intitulado Runa Simi Harawi (1975). Sobre esta obra, o poeta e professor peruano Mario Florián, autor do prólogo, afirma que Guardia Mayorga foi um “brilhante polígrafo”, pois reuniu “preocupação social e erudição”, destacando-se – para além de “professor universitário, ensaísta, filósofo e promotor de correntes socialistas marxistas em várias universidades” – também enquanto “estudioso do quéchua e poeta”. De fato, Guardia se dedicou seriamente à poesia e, neste percurso – nas sensíveis palavras do intelectual Ferdinand Cuadros – aprendeu “a filosofia da vida cantando as bordas da dor, superando-as, subjugando-as, tornando-se um homem sobre sua solidão e silêncio, e talvez também sobre o silêncio e a solidão de muitos”.
Vale por fim reiterar que, além de se distinguir como intelectual socialista, Guardia se notabilizou como um professor militante que dedicou sua vida a forjar uma juventude não apenas academicamente consistente, mas imbuída de valores éticos e de justiça social. Devido a sua obra e a sua atuação política e educacional, o marxista receberia muitas homenagens, vindo a ser membro do I Congreso Argentino de Psicología, professor honorário da Universidad San Simon de Cochabamba, professor emérito da Universidad San Luis Gonzaga de Ica e da Universidad San Agustín de Arequipa, entre outros reconhecimentos públicos.
3 – Comentário sobre a obra
A prolífica obra de César Guardia Mayorga conta com cerca de trinta livros em áreas como História, Filosofia e Psicologia, além de diversos artigos, conferências e escritos poéticos.
Seu primeiro livro foi o mencionado Historia contemporánea (Arequipa: Impr. Armando Quiroz, 1937), em que o autor ofereceu uma nova abordagem à disciplina da História, ainda pouco trabalhada no Peru da época – recusando a suposta neutralidade e objetividade da historiografia tradicional.
Pouco depois, em seu Léxico filosófico (Arequipa: s/e, 1941), expõe sua defesa de uma concepção materialista e dialética do mundo, afirmando que a matéria evolui “sem a intervenção de nenhum agente criador”; que o “materialismo dialético aceita a existência do espírito” – não como um princípio imortal, mas como “produto evoluído da própria matéria”.
Dentre suas principais obras, merece destaque Reconstruyendo el aprismo (Arequipa: Tipografía Acosta, 1945), livro fundamental que trata da virada histórica da Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA) em um contexto no qual o líder deste partido, Víctor Raúl Haya de la Torre, havia recentemente apresentado sua teoria de espaço-tempo-história – a qual logo se tornaria muito discutida entre os intelectuais socialistas peruanos. Diante disto, Guardia Mayorga contesta a teoria de Haya de la Torre, refutando sua doutrina política e filosófica, a qual ele apresenta como sendo uma perspectiva “materialista vulgar”.
Defendendo o uso da razão contra as manifestações de fanatismo, o marxista reivindica a necessidade de uma renovação democrática no Peru.
Já seu livro La Reforma Agraria en el Perú (Lima: Editorial Minka, 1957) tem como foco principal a necessidade de mudar a posse da terra, com o objetivo de pôr fim às relações latifundiárias no campo e transformar a condição do campesinato.
O Diccionario kechwa-castellano/ castellano-kechwa (Lima: Imprenta Minerva, 1959) é uma de suas obras primordiais – contendo mais de 3500 palavras quéchuas –, desenvolvida no intuito de promover a necessária integração do povo peruano, e em defesa do direito dos povos de se expressarem e desenvolverem sua cultura em sua própria língua.
De Confucio a Mao Tse Tung: del feudo a la comuna popular (Lima: Imprenta Minerva, 1960) é uma crônica em que Guardia narra sua viagem à China em 1959, procurando apresentar semelhanças entre as sociedades chinesa e peruana. Na introdução do livro (“O caminho a seguir”), o marxista lembra o interessante poeta Chu Yuang que, 350 anos antes de Nossa Era, ao ser demitido de um alto cargo, se pergunta se deve “seguir firmemente o caminho da verdade e da lealdade, ou o rastro de uma geração corrompida?”; ou ainda, se mais vale “cortejar o perigo falando com claridade, ou bajular os ricos e poderosos com falsos elogios?”.
Na obra Problemas del conocimiento (Lima: Tipografía Peruana, 1964), o autor busca demonstrar que não se pode separar a Filosofia – mais especificamente a Teoria do Conhecimento – da Ciência, pois que desta maneira a Filosofia se converteria em um esquema vazio e a Ciência em uma teoria desordenada. Entende que os sentidos, a razão e a prática são os principais meios de conhecimento – ao contrário do idealismo, isolado da natureza, desprovido de provas científicas e refugiado no subjetivismo, uma teoria que, deste modo, vive somente do apoio da burguesia, posto que é o próprio espírito de suas manifestações ideológicas. O livro está dividido em nove capítulos, que tratam de temas como os “problemas gnoseológicos”, a questão da “objetividade”, “formas do conhecimento”, “validade do conhecimento” e “critérios da verdade”.
Cultura humana (Lima: Editorial Los Andes, 1966/1971, 2 volumes) é uma análise do processo histórico e cultural desde a Grécia Antiga até a Revolução Francesa de 1789, abordando aspectos históricos, culturais, sociais, econômicos e filosóficos.
Em Filosofía, Ciencia y Religión (Lima: Ediciones Los Andes, 1970), Guardia aborda o problema da matéria, a luta ideológica e a consciência religiosa.
No campo da poesia, Guardia publicou, alguns anos antes de morrer, Runa Simi Harawi (Lima: s/e, 1975), uma coleção de poemas escritos em quéchua e assinados com o pseudônimo Kusi Paukar – trabalho que foi uma importante contribuição à literatura nesta língua indígena, e que está dividido em três partes: “Sonqup jarawinin: el canto del corazón”; “Umapa Jamutaynin: el pensamiento del pueblo”; “Runap Kutipakuynin: el protesto del pueblo”. É interessante notar que, também em sua poética, o autor logra manifestar sua visão dialética do mundo, como se pode observar por exemplo na seguinte estrofe do poema “Kay mana kay” [“Ser ou não ser”]: “Tudo o que existe/ como um rio/ se vai e se vai/ para não mais regressar./ Em cada instante/ semdo e não sendo”.
Ademais, dentre sua extensa obra publicada, há também os seguintes livros: Manual de legislación obrera (Arequipa: Edit. Bravo Mejía, 1938); Historia media y moderna (Arequipa: s/e, 1943); Psicología infantil y del adolescente (Arequipa: s/e, 1946); Filosofía y Ciencia (Arequipa: Tipografía Portugal, 1947); Terminología filosófica (Arequipa: Impr. Edilberto Portugal, 1949); Fascículos de Psicología (Arequipa: Edit. Universitaria, 1951); Historia de la filosofía griega (Cochabamba: Univ. San Simón, 1953); Job el creyente y Prometeo el rebelde (Lima: Edit. San Pedro, 1966); Concepto de Filosofía (Lima: Tipografía Peruana, 1966); Psicología del hombre concreto (Lima: ANEA, 1967); Carlos Marx y Federico Engels (Lima: Edit. San Pedro, 1968); Gramática kechwa (Lima: Edic. Los Andes, 1973); En el camino (Lima: Impr. Humboldt, 1978); Vida y pasión de Waman Poma de Ayala (Lima: Edic. Populares Los Andes, 1979).
Finalmente, entre os numerosos artigos e conferências proferidas por César Guardia Mayorga, vale destacar: “Visión democrática de Roosevelt” (Revista Hora del Hombre, Arequipa, n. 22, 1945); “La Reforma Universitaria” (Revista de la Universidad Nacional de San Agustín, Arequipa, 1949); “Fascículos de Psicología” (Revista de la Universidad Nacional de San Agustín. Arequipa, 1950, n. 31); “Esoterismo filosófico” (Revista de la Universidad Nacional de San Agustín. Arequipa, 1950, n. 32); “Universidad de San Marcos” (Revista de la Universidad Nacional de San Agustín, Arequipa, 1951, n. 33); “Epistemología de la Filosofía y de la Ciencia” (Congreso de Filosofía, Lima, Perú, 1951); “Concepto de la Filosofía” (Universidad San Simón, Cochabamba, 1953); “Rumbos de la Filosofía y la Ciencia en los tiempos actuales” (Universidad San Simón, Cochabamba, 1953); “Existencialismo como síntoma” (Universidad San Simón, Cochabamba, 1954); “Reflexología” (Cuadernos de Cultura, Universidad San Simón, Cochabamba, 1954); “El problema de la Reforma Universitaria” (Lima, s/e, 1957); “¿Es posible la existencia de una filosofía nacional o latinoamericana?” (Revista de la Facultad de Letras, n. 3, Universidad Nacional de San Agustín, Arequipa, 1965-1966); “Prólogo”, apresentação do livro Peruanicemos al Perú, de J. C. Mariátegui (Lima: Biblioteca Amauta, 1970).
Na rede, há algumas versões digitais dos escritos de Guardia, que podem ser lidas em portais como o da Cátedra Mariátegui (www.catedramariategui.com) e o Marxists (www.marxists.org).
4 – Bibliografia de referência
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Notas
* Sara Beatriz Guardia é editora, jornalista e escritora; professora coordenadora do Centro de Estudios La Mujer en la Historia de América Latina; diretora da Cátedra J. C. Mariátegui e da Cátedra Unesco Patrimonio Cultural da Univ. de San Martín de Porres (Peru). Autora de, entre outras obras: Mujeres peruanas: el otro lado de la historia (CEMHAL, 2013) e El pensamiento de Mariátegui en La escena contemporánea: siglo XXI (Cátedra Mariátegui/ Univ. Nac. Moquegua, 2021).
* Com colaboração e edição de texto dos tradutores e de Felipe Santos Deveza, Marcelo Roberto Dias e Joana A. Coutinho, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: [email protected].